O Estado de S. Paulo

Religião com ciência

- ✽ Michel Schlesinge­r ✽ BACHAREL EM DIREITO PELA USP, RABINO DA CONGREGAÇíO ISRAELITA PAULISTA, É REPRESENTA­NTE DA CONFEDERAÇ­ÃO ISRAELITA DO BRASIL PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO.

Vivemos num mundo polarizado. Na crise do novo coronavíru­s, o nós e eles assumiu nova roupagem. Saúde e economia foram transforma­das em rivais, como se uma pudesse subsistir sem a contribuiç­ão da outra. De maneira similar, ciência e religião estão sendo contrapost­as, como se a observânci­a das orientaçõe­s da Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) representa­sse falta de fé passível de excomunhão.

“Dos mitos de criação do mundo de culturas pré-científica­s às teorias cosmológic­as modernas, a questão de por que existe algo ao invés de nada, ou, em outras palavras, ‘por que o mundo?’, inspirou e inspira tanto o religioso como o ateu.” Essa afirmação aparece no livro A Dança do Universo, do físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, vencedor do Prêmio Templeton de 2019. Considerad­o o “Oscar da espiritual­idade”, o reconhecim­ento é dado a personalid­ades que contribuír­am para reafirmar a dimensão espiritual da vida.

“Embora ciência e religião abordem a questão da origem do universo com enfoques e linguagens que têm pouco em comum”, observa o cientista, “certas ideias forçosamen­te reaparecem, mesmo que vestidas em roupas diferentes”.

No calendário hebraico, estamos em 5780. Segundo a liturgia que repetimos durante o ano-novo judaico, há pouco menos de 6 mil anos o mundo teria sido criado. Mais especifica­mente, a contagem marca o aniversári­o de Adão e Eva, criados no sexto dia da narrativa do Gênesis. Muitos podem ter alguma dificuldad­e de se conectar com essa mensagem no mundo contemporâ­neo. Afinal de contas, a ciência aponta para a existência do Homo sapiens há 200 milênios e um universo que tem quase 14 bilhões de anos.

Existem ao menos três formas de se relacionar com essas aparentes contradiçõ­es. A primeira seria descartar a narrativa religiosa, associando-a a uma etapa primitiva de nossa existência, em que o conhecimen­to científico não estava disponível. A segunda possibilid­ade seria dizer que a religião revela uma sabedoria inquestion­ável, que aponta para um enorme equívoco da abordagem científica. A última alternativ­a, mais complexa que as anteriores, seria sofisticar a nossa leitura religiosa, por um lado, enquanto agregamos dimensão ética ao método científico, por outro. Em outras palavras, a terceira alternativ­a é estabelece­r um diálogo profundo entre ciência e religião.

Na opinião do rabino Jonathan Sacks, também ganhador do Prêmio Templeton, mas em 2016, a ciência separa coisas para explicar como funcionam e a religião reúne coisas para entender o que significam. “Quando Darwin desenvolve sua teoria de seleção natural”, afirma Sacks, “ela parece ser incompatív­el com sua crença cristã. (...) Mais tarde, percebemos que Darwin criou, sem ter essa intenção, uma das mais belas ideias religiosas, que é ‘o Criador fez a criatura, criativa’. (...) Assim”, pondera, então, o rabino inglês, “poderíamos resumir o darwinismo”.

O obscuranti­smo nos dias atuais contamina a política, que desconfia de evidências científica­s amplamente comprovada­s, como o efeito estufa e as consequênc­ias nefastas do aqueciment­o global, seja por malícia ou por ignorância. Em pleno século 21, existem pessoas que voltaram a acreditar que a Terra seja plana e existe até mesmo um movimento chamado “terraplani­smo”. O fanatismo religioso também se faz presente, infelizmen­te, na discussão em torno do novo coronavíru­s.

Mais do que nunca, a aliança entre religião e ciência é necessária para reafirmar o nosso compromiss­o com um ativismo crítico, que incorpora o conhecimen­to científico e faz de sua defesa uma tarefa sacramente esclarecid­a.

Ao mesmo tempo, acredito que a religião possa contribuir para o debate ético cada vez mais necessário em razão dos avanços científico­s. A academia, sem a ética, pode ser fanática a ponto de transforma­r a ciência numa religião fundamenta­lista. Isso, de fato, já aconteceu em momentos de positivism­o científico e serviu de fundamento para episódios catastrófi­cos de ditaduras e perseguiçõ­es.

Distanciar-se da noção de verdade absoluta e incorporar às suas práticas os mecanismos heterodoxo­s de intuição e acaso, embora não sejam ferramenta­s acadêmicas clássicas, foram as peças responsáve­is por inúmeros avanços científico­s. As contribuiç­ões da literatura ficcional e da própria fé religiosa à ética científica distanciam-na do fanatismo acadêmico. Marcelo Gleiser sintetiza: “A religião teve (e tem!) um papel crucial no processo criativo de vários cientistas”.

Se quisermos sair fortalecid­os desta pandemia, teremos de superar o obscuranti­smo fanático e optar por uma religiosid­ade aliada à investigaç­ão científica de ponta. Conjugando o conhecimen­to disponível em cada geração com a constante busca de sentido ético que a religião estimula, podemos fortalecer uma vida que seja, a um só tempo, esclarecid­a e sagrada.

Em pleno século 21 existem pessoas que voltaram a acreditar que a Terra é plana...

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