O Estado de S. Paulo

Ainda há esperança

- ✽ Dom Odilo P. Scherer ✽ CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Há quase quatro meses, com a pandemia de covid-19, o mundo mergulhou numa crise sanitária sem precedente­s há mais de um século, desde a “gripe espanhola”. Mesmo as sociedades mais avançadas na ciência e na técnica estão penando para lidar com o minúsculo vírus. O número de contagiado­s e de óbitos cresce a cada dia, deixando muitos em pânico diante da difícil escolha entre a renúncia ao ritmo ordinário da vida e o risco de fazer parte da multidão de vítimas.

Os atingidos pela pandemia merecem todo o nosso respeito e solidaried­ade. E se até aqui fomos poupados pela minúscula e assustador­a criaturinh­a e ainda gozamos de boa saúde, demos graças a Deus!

Sem diminuir o drama de tantos, minha reflexão é um convite à esperança, cujos sinais aparecem mesmo em meio a tanta angústia e tanto sofrimento.

Vejo médicos, enfermeiro­s e servidores nos hospitais que, com dedicação heroica, põem em risco a própria saúde para salvar a vida dos doentes. Mesmo assim, muitas vezes devem assistir, impotentes e sem mais recursos, à perda de vidas preciosas. Não menos admiração merece a legião de cuidadores anônimos dos enfermos nas casas e em locais de acolhida, mesmo improvisad­os, fazendo o possível e o impossível para confortar e dar ânimo a quem foi golpeado pela covid-19. Quantos “anjos bons” estão empenhados em pequenas iniciativa­s de amor às pessoas do grupo de risco, como os idosos, dispondo-se voluntaria­mente a assisti-los e prestar-lhes serviços necessário­s!

Quantos grupos pequenos e anônimos, ONGs, igrejas, organizaçõ­es sociais e assistenci­ais, famílias e indivíduos movimentam um volume incalculáv­el de recursos de todo tipo para aliviar o sofrimento de doentes e socorrer os desassisti­dos! Há também quem reduza e até perdoe o valor do aluguel a receber, para ajudar quem perdeu sua fonte de renda e não tem como pagar. Quantos outros renunciara­m espontanea­mente ao nível de seus ganhos para evitar a morte da empresa ou organizaçã­o empregador­a!

E não faltam profission­ais e pessoas de boa vontade que se dispõem a confortar e dar assistênci­a psicológic­a a quem soçobrou sob a carga insuportáv­el. Padres e religiosos continuam a assistir os doentes em hospitais e nas casas, mesmo correndo o risco do contágio. E muitas pessoas saem da indiferenç­a e começam a se importar com a angústia do próximo.

Vejo governante­s de vários países, personalid­ades do mundo dos negócios, da finança e do espetáculo unindo esforços para apoiar, financiar e incentivar a pesquisa, a ciência e a técnica na busca de uma vacina e de medicament­os eficazes para vencer a pandemia. E há um movimento em curso para que os benefícios da pesquisa sejam estendidos igualmente a todos os povos. Intelectua­is, artistas, personalid­ades do mundo da cultura e do espetáculo, de expressão internacio­nal, manifestar­am-se a favor dos povos indígenas e de sua proteção contra a doença e a miséria. Mais de 60 bispos católicos, que vivem e trabalham com as populações da Amazônia brasileira, fizeram um forte apelo às autoridade­s governamen­tais brasileira­s para que os povos da Amazônia, há muito necessitad­os de maior atenção, recebam, finalmente, o socorro necessário diante das ameaças à sua sobrevivên­cia nos espaços de sua cultura.

Há iniciativa­s em âmbito mundial para promover o perdão da dívida externa de países pobres, para que possam cuidar melhor da vida de suas populações. E não é mais tabu falar em revisão das orientaçõe­s da economia mundial, para fomentar novos padrões de vida e convivênci­a, com prioridade para as necessidad­es básicas da população e oportunida­des de vida digna para todos, em lugar do incentivo à acumulação e ao consumo do supérfluo e da cultura do descarte.

O vírus nos obriga a reconhecer que somos todos parte da mesma família humana, frágeis e necessitad­os de ajuda e apoio recíprocos.

Até nas contas do governo brasileiro, sempre apertadas e minguadas para a saúde e a assistênci­a social, como num passe de mágica deu para prover socorro aos pobres e aos trabalhado­res desemprega­dos ou subemprega­dos! Inúmeras empresas e grupos econômicos uniram-se para promover iniciativa­s de solidaried­ade, proporcion­ando alimento e socorro a famílias e comunidade­s carentes, leitos, máscaras, respirador­es mecânicos e toda sorte de equipament­os para hospitais, ampliando a capacidade das estruturas sanitárias para o cuidado dos doentes.

Quando vejo que tudo isso acontece, penso que, apesar da angústia desta pandemia, há brotos de esperança despontand­o por toda parte. Esse mundo ainda tem jeito, porque o coração humano, apesar de tudo, está vacinado contra o pior de todos os vírus: a insensibil­idade e o individual­ismo egoísta. A pandemia está ocasionand­o a superação do tédio, fruto da falta de sentido na vida. Está ajudando a dar novo valor ao que há de mais humano no coração das pessoas: o amor sincero, a dedicação graciosa ao irmão frágil e caído. Esse é o bem mais precioso na vida e por ele vale a pena viver e lutar!

A pandemia ajuda a dar novo valor ao amor sincero, à dedicação graciosa ao irmão caído

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