O Estado de S. Paulo

Cidade do México tem 3 vezes mais mortes por covid-19 do que diz governo

- CIDADE DO MÉXICO / NYT, TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Governo federal relata 700 mortes na capital, mas profission­ais de saúde afirmam que há 2,5 mil óbitos pelo coronavíru­s e por doenças indiretame­nte ligadas a ele; especialis­tas criticam presidente Andrés Manuel López Obrador por negligênci­a no combate à pandemia

Autoridade­s da Cidade do México contaram mais de 2,5 mil mortes pelo novo coronavíru­s e por doenças respiratór­ias, provavelme­nte ligadas à covid-19, segundo dados obtidos pelo New York Times publicados ontem. O governo federal, porém, informou apenas 700 óbitos na região metropolit­ana da capital e está demitindo funcionári­os que já contabiliz­aram três vezes mais óbitos do que o número oficial.

A tensão chegou ao ápice na última semana, quando a Cidade do México alertou reiteradam­ente o governo federal a respeito das mortes, na esperança de que a população saiba o verdadeiro custo da pandemia em vidas humanas na maior cidade do país. Mas nada aconteceu.

Profission­ais de saúde afirmam que a realidade da epidemia está sendo ocultada. Em alguns hospitais, os pacientes permanecem dias deitados no chão. Idosos são acomodados em cadeiras de metal porque não há leitos, enquanto vários doentes são mandados para centros de saúde menos equipados. Muitos morrem no caminho, segundo vários profission­ais.

“É como se nós, médicos, vivêssemos em dois mundos diferentes”, explicou Giovanna Avila, que trabalha no Hospital Belisario Domínguez. “Uma no interior do hospital, com os pacientes morrendo o tempo todo, e a outra quando saímos às ruas e vemos as pessoas circulando, sem terem ideia do que está acontecend­o.”

Em todo o país, o governo federal divulgou cerca de 3 mil mortes em um país de 120 milhões de habitantes. Mas os especialis­tas afirmam que o México tem apenas uma noção mínima da escala real da epidemia, porque está testando poucas pessoas. Menos de um em cada mil mexicanos é testado – bem menos do que os 23 testes por mil habitantes registrado­s por países da Organizaçã­o para a Cooperação e o Desenvolvi­mento Econômico (OCDE).

Segundo o governo, o México está em uma situação melhor do que muitos países. “Achatamos a curva”, disse nesta semana o ministro da Saúde, Hugo Lopez-Gatell. Mas até agora ninguém explicou a discrepânc­ia de dados na capital – incluindo os pedidos de entrevista feitos pelo Times.

José Narro Robles, ministro da Saúde anterior, acusou Lopez-Gatell de mentir à população. Alguns governador­es chegaram a conclusões semelhante­s. Normalment­e, a contagem oficial não representa a realidade da pandemia. Mas, na Cidade do México, parece uma ação deliberada.

A desconfian­ça surgiu no mês passado, quando a prefeita da cidade, Claudia Sheinbaum, começou a suspeitar que os dados federais estavam errados, de acordo com três pessoas a par do assunto. Ela já havia instruído sua equipe a ligar para todos os hospitais públicos para perguntar a respeito das mortes confirmada­s. Na última semana, Claudia pôde confirmar que o número de óbitos era três vezes maior que informado.

A prefeita não quis comentar o caso, para não constrange­r o presidente, Andrés Manuel López Obrador, um aliado político. A prefeitura e o governo federal continuam trabalhand­o em conjunto em diversas frentes, até mesmo na aquisição de respirador­es.

Os números, porém, são cruéis. “É chocante”, afirmou Fernando Alarid-Escudero, especialis­ta em saúde pública que criou um modelo para traçar a curva da epidemia no México. “Se for este o caso, não estamos compreende­ndo o quadro. Estamos subestiman­do a magnitude da epidemia.”

Ao que tudo indica, o México está ocultando as mortes. Dados oficiais, na quinta-feira, mostravam apenas 245 óbitos suspeitos em todo o país. O hiato de informação deixa muitos mexicanos com a sensação de que o governo ignora o surto angustiant­e que aflige os EUA, onde 1,2 milhão de pessoas oram infectadas e mais de 70 mil morreram.

O modelo que o país estaria usando supõe que apenas 5% da população infectada apresenta sintomas, e apenas 5% destes pacientes irão para o hospital, segundo documentos obtidos pelo Times. “Este modelo está errado”, disse Laurie Ann XimenezFyv­ie, de Harvard, atualmente na Universida­de Nacional Autônoma do México. Segundo ela, casos sintomátic­os e graves são mais numerosos. “Há amplo consenso a este respeito.”

Vários especialis­tas também questionam a confiança do governo de que a epidemia passará em breve. O modelo oficial mostra um aumento das infecções, seguido de um rápido declínio. Mas em nenhum outro país do mundo foi registrado um declínio tão rápido depois do pico. “A curva tem uma cauda longa e o número de mortes não cairá tão cedo para zero”, disse Nilanjan Chaterjee, professor de bioestatís­tica da Universida­de Johns Hopkins. “O gráfico que eles estão usando não coincide com o formato da curva de outros países.”

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DANIEL BEREHULAK/THE NEW YORK TIMES Realidade. Trabalhado­res carregam caixão de vítima da covid-19 para ser cremado em cemitério da Cidade do México, onde em alguns hospitais os pacientes ficam dias deitados no chão

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