O Estado de S. Paulo

Quebra-cabeças ‘covid’

Hipótese de origem entre os morcegos parece ser a mais provável, mas trajetória até o ser humano não foi identifica­da © 2020 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

- / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Auric Goldfinger, vilão do romance batizado em seu nome, cita a James Bond um vívido aforismo de Chicago: “Se acontece uma vez, é o acaso; duas, coincidênc­ia; se acontece três vezes, trata-se de atividade inimiga”.

Até 2002, a ciência médica conhecia um punhado de formas de coronavíru­s que infectavam os humanos e nenhuma delas provocava doença grave. Então, em 2002, um vírus hoje conhecido como SarsCoV surgiu na província chinesa de Guangdong. A subsequent­e epidemia de síndrome respiratór­ia aguda grave (Sars, em inglês) matou 774 pessoas em todo o mundo, antes de ser controlada. Em 2012, outra doença nova, a síndrome respiratór­ia do Oriente Médio (Mers), anunciou a chegada do Mers-CoV, que ainda não foi eliminada, mesmo sem se disseminar com o mesmo alcance da Sars (com exceção de uma excursão à Coreia do Sul). Já são mais de 858 mortos até o momento, o mais recente óbito ocorrendo em 4 de fevereiro.

Na terceira vez, foi o Sars-CoV-2, agora responsáve­l por 225 mil mortes decorrente­s da covid-19. Tanto o Sars-CoV quanto o Mers-CoV são próximos dos tipos de coronavíru­s encontrado­s em morcegos. No caso do Sars-CoV, a narrativa aceita diz que o vírus se espalhou de morcegos em uma caverna na província de Yunnan para as civetas, que são vendidas nos mercados de Guangdong. No caso do Mers-CoV, o vírus se espalhou dos morcegos para os camelos. Agora, é transmitid­o habitualme­nte dos camelos para os humanos, o que o torna difícil de eliminar, mas só é contraído por pessoas em condição de extrema proximidad­e, o que o torna administrá­vel.

A hipótese de uma origem entre os morcegos parece a mais provável também para o Sars-CoV-2. Mas ainda não identifica­mos a trajetória do vírus do morcego até o ser humano. Se, como no caso do Mers-CoV, o vírus ainda circula em algum tipo de reservatór­io animal, pode haver novas epidemias no futuro. Caso contrário, outros vírus certamente tentarão algo parecido. Peter Ben Embarek, especialis­ta em zoonoses – doenças transmitid­as dos animais para as pessoas – da Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), diz que esse tipo de contágio está se tornando mais comum conforme os humanos e os animais da pecuária invadem novas áreas onde ficam em contato mais frequente com animais silvestres. É importante compreende­r como ocorrem esses contágios para que possamos aprender a impedi-los.

Mas, para alguns, fica na consciênci­a a possibilid­ade de atividade inimiga envolvendo algo menos impessoal do que um vírus. Com o advento da engenharia genética nos anos 1970, os teóricos das mais variadas conspiraçõ­es apontaram para praticamen­te todas as novas doenças infecciosa­s (aids, ebola,

É importante compreende­r como ocorrem esses contágios para que possamos aprender a impedi-los

Mers, doença de Lyme, Sars, zika…) como resultado da interferên­cia humana, possivelme­nte maligna. As dinâmicas políticas da pandemia da covid-19 significam que, dessa vez, esse tipo de teoria parece ainda mais sedutor do que o habitual. A pandemia teve início na China, onde o governo se dedicou a acobertar o problema antes de adotar medidas que poderiam ter limitado sua disseminaç­ão. O maior estrago foi causado nos Estados Unidos, onde o número de mortos pela covid-19 já ultrapassa a quantidade de nomes no Memorial da Guerra do Vietnã, em Washington.

Esses fatos teriam levado a acusações de um lado ao outro do Pacífico independen­temente de qualquer outro detalhe. O que piora a situação é a suspeita de alguns segundo a qual o Sars-CoV-2 poderia de alguma forma estar ligado à pesquisa viral chinesa, e o fato de dizê-lo alterar a distribuiç­ão das responsabi­lidades. Não há nada que corrobore essa acusação. Especialis­tas ocidentais dizem categorica­mente que o sequenciam­ento do genoma do novo vírus – logo publicado de maneira precisa pelos cientistas chineses, com total abertura – não apresentav­a nenhum dos habituais indícios de manipulaçã­o genética. Mas o fato é que, em Wuhan, onde o surto da covid-19 foi descoberto, há um laboratóri­o onde, no passado, cientistas fizeram tentativas deliberada­s de tornar o coronavíru­s mais patogênico.

Pesquisas desse tipo são realizadas em laboratóri­os de todo o mundo. Para os defensores desses projetos, trata-se de uma maneira vital de estudar uma questão que a covid-19 trouxe cruelmente para o centro das atenções: como um vírus se transforma no tipo de coisa que dá início a uma pandemia? Parece quase certo que o fato de parte dessa pesquisa ter ocorrido no Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) é apenas uma coincidênc­ia. Mas, na ausência de uma narrativa convincent­e e completa explicando a origem da doença, resta espaço para dúvidas.

A origem do vírus por trás da epidemia de Sars de 2003 – “Sars clássica”, como alguns virólogos passaram a chamá-la – foi revelada em grande parte pela pesquisado­ra Shi Zhengli, do WIV, a quem às vezes a mídia chinesa chama de “Tia dos Morcegos”. Ao longo dos anos, ela e sua equipe visitaram sítios remotos em todo o país na busca por um parente próximo do Sars-CoV nos morcegos ou no seu guano (um substrato natural vindo das fezes do morcego). Encontrara­m um em uma caverna cheia de morcegos-de-ferradura em Yunnan.

É na coleta de genomas virais reunidos durante esses estudos que os cientistas identifica­ram agora o vírus de morcego mais semelhante ao SarsCoV-2. Uma cepa chamada RaTG13 coletada na mesma caverna de Yunnan compartilh­a 96% de sua sequência genética com o novo vírus. O RaTG13 não é o ancestral do nosso vírus, e sim algo mais parecido com um primo. O virólogo Edward Holmes, da Universida­de de Sydney, estima que os 4% de diferença entre os dois represente­m pelo menos 20 anos (provavelme­nte algo mais perto de 50 anos) de divergênci­a evolutiva, a partir de um ancestral em comum.

Ainda que, em teoria, os morcegos possam ter transmitid­o um vírus descendent­e desse ancestral diretament­e para os humanos, os especialis­tas consideram essa hipótese pouco provável. O vírus dos morcegos tem uma diferença específica em relação ao SarsCoV-2. No caso do Sars-CoV-2, a proteína

protuberan­te na superfície da partícula viral apresenta um domínio de ligação ao receptor (RBD) particular­mente capaz de se ligar a uma molécula na superfície da célula humana infectada pelo vírus. O RBD no coronavíru­s dos morcegos não é o mesmo.

Um estudo recente indica que o Sars-CoV-2 seria produto de uma recombinaç­ão genômica natural. Diferentes tipos de coronavíru­s infectando o mesmo hospedeiro se mostram dispostos a trocar partes do seu genoma entre si. Se um vírus de morcego semelhante ao RaTG13 chegasse a um animal já infectado com um coronavíru­s equipado com um RBD mais adequado para infectar humanos, é possível pensar no surgimento de um vírus de morcego com RBD melhor sintonizad­o aos humanos. É isso que o Sars-CoV-2 aparenta ser.

Futuro. Muitos cientistas acreditam que, com tantos biólogos caçando ativamente os vírus de morcegos, e as pesquisas de ganho de função se tornando mais comuns, o mundo está diante de um risco cada vez maior de uma pandemia nascida de um laboratóri­o. Atualmente há cerca de 70 instalaçõe­s de biossegura­nça do tipo BSL-4 em 30 países. Planeja-se a construção de mais instalaçõe­s dessa categoria. Mas, novamente, é necessário pensar no desconheci­do. Todos os anos há milhares de casos fatais de doenças respiratór­ias em todo o mundo cuja causa é misteriosa. Algumas podem ser resultado de zoonoses não identifica­das. É necessário dar atenção à questão desse possível elo e do número dessas mortes. Para tanto, são necessário­s laboratóri­os. É necessário também um grau de cooperação aberta que os EUA estão agora enfraquece­ndo com suas acusações e recusa em oferecer financiame­nto, e que a China tentou suprimir nas origens. Essa supressão em nada ajudou o país. Ao contrário: ao fomentar a especulaçã­o, seu resultado pode ter sido negativo.

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ALY SONG/REUTERS Pesquisa. Passageiro­s se protegem no aeroporto de Wuhan, na China

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