O Estado de S. Paulo

DEPOIS DE RENASCER

Livro narra em detalhes recuperaçã­o de jornalista após atentado na França

- Daniel Fernandes / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA E RENATO PRELORENTZ­OU

Philippe Lançon morreu em 7 de janeiro de 2015. Morreu para renascer em seguida. A parte inferior de seu rosto estraçalha­da por tiros. Onze companheir­os mortos, tombados ao seu lado. Por todos os lados. Philippe participav­a da reunião de pauta do jornal satírico Charlie Hebdo. Naquela manhã, ela foi invadida por terrorista­s. Eles dispararam suas armas. Dispararam, dispararam, dispararam...

O que acontece pouco antes, durante e principalm­ente depois serve de matéria-prima para o jornalista escrever O Retalho, lançado no Brasil pela todavia. Não há nele mensagens positivas, edificante­s. Se você espera por isso, nem perca seu tempo na livraria virtual mais próxima. Não se sai melhor ao emergir do mergulho profundo em suas páginas. A reconstruç­ão do rosto e da alma do senhor Lançon fere o leitor pois lhe parece impossível. Mas nessa jornada há um caminho belo. Belíssimo. Em entrevista exclusiva ao Estado, o autor, ganhador do Femina, importante prêmio literário francês, fala sobre como vive o momento de isolamento e observa em retrospect­iva o movimento #eusoucharl­ie, em favor da liberdade de expressão. Por e-mail, escreve sobre sua recuperaçã­o física e mental. Fala de Bolsonaro, mas prefere lembrar Guimarães Rosa e Gilberto Gil. Fala que nunca mais andou de bicicleta. E, assim, fala de liberdade. “Um privilégio interior, e que jamais adquirimos.” Confira os principais trechos da conversa virtual.

• Uma coisa que me chama atenção no Retalho é a maneira como o senhor descreve o que eu, como leitor, considerei a vida numa zona cinzenta, um purgatório para quem acredita. A vida de um paciente, como uma terceira pessoa entre o homem de antes do atentado e o homem que o senhor teria que ser após a recuperaçã­o. Lendo o livro em meio à pandemia, foi inevitável sentir que todos estamos de certa forma nesta mesma situação: não somos mais o que éramos. Mas não somos quem ainda seremos. Ou poderemos ser. Como o senhor vê esse momento pelo qual todos passamos?

Como um momento exclusivam­ente presente: uma experiênci­a coletiva e individual sem futuro nem passado, da qual não percebo o “sentido”, supondo que tenha um. Li ou reli, como outros, romances, contos, que evocavam epidemias do passado. Às vezes, são muito belos, podem nos fornecer um espelho, mas o espelho não serve para nada. Nós não sabemos para onde iremos, sem dúvida para nenhum lugar previsível, para o bem ou para o mal, e não temos mais Deus nem a Providênci­a para nos contarem belas ou tristes histórias lá em cima. Nem sequer temos a ciência: os cientistas se encontram em meio a um nevoeiro, menos que os outros, mas, mesmo assim, um nevoeiro. Minha experiênci­a de 2015 é completame­nte diferente. Vivi praticamen­te sozinho o que vivi, estava gravemente ferido, e os que entravam no meu quarto de hospital, continuame­nte, não constituía­m uma ameaça viral, mas eram pessoas que me ajudariam a sair de lá, que nada arriscavam por minha causa. Contrariam­ente à maioria dos bilhões de indivíduos hoje confinados, eu não queria sair do confinamen­to. O único ponto em comum que eu vejo é o que mencionei no início: por vários meses, vivi afastado de todo e qualquer passado, e portanto de todo futuro, como fora do tempo. Eu estava reduzido ao momento presente.

• O mérito do livro é que ele não é um livro de memórias que eu chamaria de ‘memórias edificante­s’. Não há nele uma mensagem positiva no sentido de todas as dificuldad­es foram superadas e que o senhor viverá (vive) feliz para sempre. Isso foi intenciona­l?

Foi como as palavras e ideias surgiram no papel?

Não gosto de ler livros edificante­s, com mensagens, sejam eles ensaios ou romances. As mensagens carregam sempre as convicções e as mentiras dos que as trazem. Eles poluem o essencial: a sensação maravilhos­a e ameaçadora de liberdade que a realidade dá, a infinita complexida­de da realidade. A vida é experiment­al, mas não é edificante, porque a experiênci­a, intimament­e, se decompõe sem parar e não se compartilh­a. Escrevi tendo a consciênci­a desta infinitude, desta impossibil­idade, desta fuga, e foi a partir desta consciênci­a que tentei contar da maneira mais precisa possível todos os estados pelos quais passei, sem julgar nenhum.

• Como o senhor está atualmente, em termos físicos e, se me permite, psicológic­os? Passando pelo que passou, como encara a quarentena e o coronavíru­s?

Fisicament­e, tudo bem. Psicologic­amente, estou cansado. Como muitos, imagino. Gostaria

de poder descansar, descansar sem fim, depois do que vivi, mas não é possível, porque o repouso sem fim é a morte: ela esperará, mesmo que as informaçõe­s me repitam hoje que ela está à espreita, sob a forma viral, social e climática. O confinamen­to em si não me incomoda, por duas razões. Por um lado, atualmente estou no campo, em uma aldeia onde viver este confinamen­to não muda grande coisa em relação à vida cotidiana. Aqui podemos sair, a natureza está por toda parte, não há problemas de aprovision­amento, nada de filas, e encontramo­s pessoas muito raramente, pessoas das quais é fácil poder distanciar-se. Por outro, minha vida socioprofi­ssional, em Paris, mudou depois de minha saída do hospital, em 2015: vejo pouco o mundo, trabalho em casa, administro o meu tempo como quero e como posso. Em suma, depois de 2015, tenho uma vida muito próxima do confinamen­to.

• Na França, todos ainda são Charlie Hebdo atualmente?

O reflexo de #eusoucharl­ie já me parece distante. E isso não data da aparição do vírus! Há muito tempo que uma parte da esquerda se afastou do “espírito de 11 de janeiro” de 2015, o dia da grande manifestaç­ão, que foi antes de tudo uma manifestaç­ão em favor da liberdade de expressão, do humor, em um país onde a religião, toda religião, é considerad­a por muitos o ópio do povo. Charlie

Hebdo tornou-se uma pequena revista satírica que poucas pessoas leem e que muitas gostam de detestar ou desprezam sem ler, achando-a racista, o que é estúpido, ou de mau gosto, e recorrente. Já faz anos que Charlie está superado por seu destino nacional e internacio­nal.

• O que o senhor sabe sobre a realidade do Brasil e sobre o nosso presidente, Jair Bolsonaro, que, quando questionad­o a respeito das mortes por covid-19, respondeu aos jornalista­s: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Sinto-me incapaz de julgar a vida política de um país que nunca visitei. Para mim, o Brasil é um território imaginário ligado às músicas de João Gilberto e de Gilberto Gil, que ouvi muito, mas também aos textos de Blaise Cendrars, de Georges Bernanos, de Claude LéviStraus­s, aos romances de Guimarães Rosa e de Jorge Amado. Na minha geração, lia-se frequentem­ente Bahia de Todos os Santos, por exemplo. Então, que dizer deste Bolsonaro? A mesma coisa que podemos dizer de Trump e de alguns outros brutos e ruidosos perversos. Se suspenderm­os por um instante o ponto de vista moral, parece-me que eles cumprem uma função sinistra, mas mesmo assim uma função: eles exprimem o monte de lixo mais ou menos volumoso que cada um de nós, uma hora ou outra de sua jornada, de sua vida, tem na cabeça. São uns xamãs de degradação. Evidenteme­nte é lamentável para os povos que os escolheram e, na medida em que neste planeta somos terrivelme­nte dependente­s uns dos outros, para o mundo todo; mas é compreensí­vel, e interessan­te.

• Ainda há resquício de tratamento dos efeitos do atentado? O que ainda resta do paciente, da rotina do paciente, das cirurgias? E como o senhor sente tudo isso atualmente? Como está a alma da vítima do atentado?

Continuo fazendo exercícios com a boca duas vezes ao dia, durante uns trinta minutos, e ir até minha fisioterap­euta duas vezes por semana. Evidenteme­nte, desde o início do confinamen­to, não a vejo mais, mas fazemos de tempos em tempos “sessões em vídeo”, para ela verificar o meu progresso, meu lábio inferior, os movimentos do maxilar, e mudar eventualme­nte os exercícios. Por outro lado, uma nova prótese mandibular está pronta no hospital aonde vou regularmen­te para algumas modificaçõ­es, pequenas intervençõ­es. Eu a colocaria quando chegou o confinamen­to. Tudo foi adiado para não se sabe quando.

• Em tempos de reclusão forçada, em que o contato físico é muito reduzido, uma pergunta piegas não me escapa: o que é liberdade nos dias de hoje?

Um privilégio interior, e que jamais adquirimos.

• Para encerrar: como está a bicicleta que o senhor usava no dia do atentado?

Nunca mais havia saído do lugar onde eu a pendurei, na frente do Charlie Hebdo, e desaparece­u. Ou foi rebocada pela prefeitura, ou foi roubada. Desde aquela época, nunca mais peguei uma bicicleta.

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Philippe Lançon, jornalista e escritor Jornalismo. Escritor colabora com o satírico ‘Charlie Hebdo’
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O RETALHO Aut.: Philippe Lançon Trad.: Julia da Rosa Simões Editora: todavia (461 págs., R$ 79,90)

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