O Estado de S. Paulo

Os morlocks

- ESCREVE AOS SÁBADOS Sérgio Augusto

Muita gente se fez essa pergunta às primeiras irrupções dos black blocs nas manifestaç­ões de rua de alguns anos atrás, embora sem aquele tom prazenteir­o com que há mais tempo os turistas estrangeir­os indagam aos cariocas onde é que aquelas mulatas esculturai­s das escolas de samba se escondem antes e depois do carnaval.

Muita gente agora repete a pergunta quando os militantes bolsominio­ns saem às ruas, fantasiado­s de verde e amarelo, para mais uma marcha da insensatez e do orgulho nazifascis­ta.

Os black blocs nada tinham ou têm a ver com os squadistri do duce brasiliens­e, esses belicosos gigolôs do patriotism­o e do farisaísmo evangélico que nos fins de semana pressionam pelo fim da democracia e prometem deflagrar uma guerra civil, uns até já metidos em uniformes de campanha, como se viu num vídeo grotesco e criminoso veiculado nas redes sociais quarta-feira à noite.

Os black blocs – inesperado­s, incontrolá­veis e apenas visíveis no breve momento da baderna – vandalizav­am símbolos materiais do capitalism­o selvagem, atacavam vitrines de butiques, caixas eletrônico­s, carros de luxo, jogavam pedras e outros objetos à mão; mas não agrediam pessoas física ou verbalment­e; não faziam ameaças nem incitavam a intervençã­o de outras forças além das suas próprias, que nunca botaram para quebrar exigindo o fechamento do Congresso e do STJ, a reedição do AI-5 e o que mais pudesse resultar de um putsch militar.

De que trevas afinal vieram essas criaturas que se enrolam no pavilhão nacional e, destilando ódio e ostentando uma ferocidade homicida, agridem jornalista­s e até enfermeira­s, reverberan­do desejos troglodita­s que ressentime­ntos incubaram, a ignorância exacerbou e o insano, narcisista e messiânico capitão-presidente não se cansa de insuflar?

Meu palpite é que saíram de lugar nada recomendáv­el, onde, no mínimo, reina a escuridão. Como os Morlocks.

Taí um nome que lhes cai bem. Tem mais pedigree que os black blocs. Inventou-o o britânico H.G. Wells, no romance A Máquina do Tempo, a mais lida aventura sobre engenhocas que nos levam ao passado e ao futuro. Zumbis antropoide­s, que se homiziaram debaixo da Terra após uma guerra nuclear que quase destruiu o planeta, os morlocks viviam aterroriza­ndo os Elois, os habitantes da superfície terrestre. As duas adaptações do livro ao cinema respeitara­m sua configuraç­ão original: medonhas criaturas de aspecto simiesco (Darwin explica), inteiramen­te cegas (Platão explica) e canibalesc­as – os vilões da história.

Cinco décadas atrás, os quadrinhos dos X-Men os reciclaram como mutantes proscritos da sociedade por preconceit­os físicos e raciais, que sobrevivia­m nos subterrâne­os de Manhattan, em abandonado­s abrigos antiatômic­os, grandes tubulações de ar refrigerad­o e esgotos ainda mais carregados de simbolismo. Ganharam outro status sociopolít­ico no auge da luta pelos Direitos Civis nos EUA, bem mais expressivo do que lhes dera Wells, ao paragoná-los, superficia­lmente, com a classe operária da Inglaterra vitoriana.

Nossos morlocks assemelham-se aos que nos aterroriza­ram no romance e na tela: cegas e desatinada­s criaturas incapazes de ver a luz.

*

Durante a ditadura militar, sempre que morria um grande artista reprimido pelo regime, alguém espanava o bordão “assassinat­o cultural” e o devolvia à prateleira da retórica elegíaca. Às vezes era mais uma hipérbole do que uma acusação fundamenta­da, um desabafo inflamado pela dor da perda e a certeza de que o autoritari­smo também destrói vidas por vias tortas.

Esta semana caiu na conta do governo Bolsonaro um binômio fadado a prosperar, “suicídio cultural”. Na carta em que justificou seu gesto extremo, o ator Flávio Migliaccio deixou claro que já não aguentava mais ser velho no Boçalnistã­o.

“Não deu mais”, desabafou. E prosseguiu: “A velhice neste país é o caos como tudo agora”. Migliaccio, que na juventude enfrentou com destemor, tenacidade e arte a ditadura cultuada pelos morlocks, no inverno do seu descontent­amento, capitulou. “Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com este tipo de gente que acabei encontrand­o”, arrematou.

Como bem notou a jornalista Cynara Menezes, em sua página na internet, Migliaccio não escreveu uma carta de suicida, mas “um protesto, um apelo, uma súplica”. Mais: “um documento histórico dos tempos atuais”. Cynara foi quem melhor abordou, nas mídias sociais, a polêmica que se armou em torno da divulgação da carta, por alguns vista como uma invasão (ou evasão) de privacidad­e. Não confere: o ator a deixou na cabeceira da cama, para que todos a lessem.

Manifesto não se engaveta. O “caos” da velhice a que Migliaccio se refere é uma clara alusão à reforma da Previdênci­a e ao contumaz desprezo dos atuais governante­s pelos idosos, tidos como vítimas inevitavel­mente preferenci­ais da covid19 (uma doença que “só mata velho”) e pacientes a sempre serem preteridos por um jovem quando houver apenas um leito com respirador disponível.

Imagine-se na emergência de um hospital, com apenas um leito disponível e dois candidatos: Aldir Blanc, 73 anos, e um garotão qualquer, que não estuda, não trabalha, um inútil. A escolha esperada não é a de Sofia e merecia ser batizada com o nome do ministro da Saúde que a recomendou. Mas para que preservar a vida de um garotão, se ao que tudo indica, seu futuro é uma miragem dantesca?

De que trevas afinal vieram essas criaturas destilando ódio e ostentando ferocidade homicida?

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