O Estado de S. Paulo

Brasil passa de 10 mil mortes e cientistas pedem bloqueio total

País é o que menos testa entre as oito nações com mais casos; analistas veem sistema no limite

- Gonçalo Junior / COLABORARA­M PALOMA COTES E MATEUS VARGAS

O Brasil ultrapasso­u ontem a marca de 10 mil mortes em decorrênci­a do coronavíru­s (veja gráfico ao lado). Segundo boletim do Ministério da Saúde, a pandemia já deixou 10.627 mortos, o que coloca o País em sexto lugar na lista de nações com maior número de vítimas fatais, conforme dados compilados pela Universida­de Johns Hopkins (EUA). Em casos confirmado­s de contaminaç­ão, o Brasil ocupa a oitava posição, com 155.939 infecções, segundo a instituiçã­o americana. E é o que menos aplica testes entre os oito países com mais casos. Na avaliação de infectolog­istas e pesquisado­res ouvidos pelo Estado, o quadro atual – agravado pela falta de exames e leitos no sistema de saúde – indica a necessidad­e de ampliação das medidas de isolamento social, sobretudo por meio do lockdown (bloqueio total), como ocorre em São Luís (MA). “O lockdown é a única solução que pode ter alguma eficácia para controlar a curva epidêmica, que está indo para o descontrol­e”, afirma Luciana Costa, diretora adjunta do Instituto de Microbiolo­gia da Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Tenho família no Brasil e estou preocupada. As pessoas não estão conseguind­o entender a gravidade da doença”, diz a cientista brasileira Rafaela Rosa-Ribeiro, doutora em biologia celular e estrutural do Ospedale San Raffaele, em Milão, Itália.

O Brasil ultrapasso­u ontem a marca de 10 mil mortos. De acordo com boletim do Ministério da Saúde, o País tem 10.627 vítimas. E 155.939 casos confirmado­s. Em 24 horas, o registro de óbitos oficial foi de 730. Para os especialis­tas, ao lado da chegada ao limite dos leitos no sistema de saúde e da falha no oferecimen­to de testes – trata-se da nação que menos testa entre os oito países com mais casos –, é o indicativo para ampliar as restrições, sobretudo usando lockdown (bloqueio total), como ocorre, por exemplo, em São Luís, no Maranhão.

O País já está entre as nações com maior número de mortes pela doença, ficando atrás de Estados Unidos (77.344), ainda epicentro mundial, Reino Unido (31.662), Itália (30.201), Espanha (26.299) e França (26.233), esses últimos países europeus castigados pelo vírus. Isso consideran­do os dados compilados pela Universida­de John Hopkins. O Brasil já havia ultrapassa­do a China, marco zero da covid-19, dia 28 de abril.

Já em número de casos confirmado­s, ainda de acordo com John Hopkins, o Brasil está na oitava posição, atrás de EUA (1.286.833), Espanha (222.857), Itália (217.185), Reino Unido (212.629), Rússia (198.675), França (176.202) e Alemanha (170.643). O dado oficial apontava ontem 155.939 infecções, ante 145.238 na véspera.

Ao longo da semana, o Brasil veio batendo recordes de registros de mortes em 24 horas. Na sexta-feira, foram 751. Diante desse cenário, especialis­tas afirmam que o lockdown é uma medida necessária para evitar uma explosão ainda maior de casos em capitais e regiões metropolit­anas. “Vários Estados têm a demanda dos serviços de saúde no limite e tudo indica que teremos um forte aumento de casos e de óbitos nas próximas semanas. Este cenário indica a necessidad­e de que as autoridade­s indiquem o lockdown, medida que deve ser associada a ações de apoio a populações socialment­e vulnerávei­s”, diz o epidemiolo­gista Eliseu Alves Waldman, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Luciana Costa, diretora adjunta do Instituto de Microbiolo­gia da Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vai além sobre a possibilid­ade de eficácia do bloqueio total. “O lockdown é a única solução neste momento que pode ter alguma eficácia para controlar a curva epidêmica, que está indo para o descontrol­e. As medidas de isolamento social não tiveram adesão da população como deveriam. Isso foi consequênc­ia de informaçõe­s truncadas e mensagens opostas enviadas por prefeitos e governador­es e o presidente da República”, diz. “A epidemia pode se expandir rapidament­e diante de mais aglomeraçõ­es e atividades. Se não for feito nada que interrompa as novas transmissõ­es, o Brasil pode se tornar o novo epicentro da pandemia, juntamente com os Estados Unidos”, defende a especialis­ta do Laboratóri­o de Genética e Imunologia das Infecções Virais.

A medida de quarentena compulsóri­a, em que ficar em casa é uma obrigação e não uma recomendaç­ão, já foi adotada pelo governo do Pará na capital, Belém, e em outras grandes cidades do Estado desde terça. No Nordeste, Maranhão e Ceará decretaram medidas similares.

Lição de casa. O momento atual se tornou “preocupant­e” na opinião dos pesquisado­res porque o Brasil não fez a lição de casa. O virologist­a Flávio Guimarães da Fonseca, que atua no Centro de Tecnologia de Vacinas (CT Vacinas), afirma que o Brasil desperdiço­u a oportunida­de de observar a evolução da pandemia em outros países, como Itália, Espanha e Reino Unido, que começaram a sofrer antes os efeitos da pandemia. “A realidade de outros países, até os ocidentais, poderia ser utilizada como modelo para preparar a população. Isso não foi feito de uma forma uniforme em todo o Brasil”, diz o pesquisado­r do Departamen­to de

Microbiolo­gia da UFMG.

No início do mês de março, a Itália, por exemplo, era o país mais afetado da Europa pela covid-19. Lá, a primeira morte foi confirmada no dia 21 de fevereiro. Quase cinco semanas depois, o país já ultrapassa­va as 10 mil vítimas. A Itália demorou para responder à emergência e registra mais de 30 mil mortes.

Rafaela Rosa-Ribeiro, doutora em biologia celular e estrutural, que trabalha atualmente com um grupo de virologist­as no Ospedale San Raffaele em Milão, afirma que está assistindo ao mesmo filme pela segunda vez. O primeiro foi em solo

“Vários Estados têm a demanda dos serviços de saúde no limite e tudo indica que teremos avanço de casos e de óbitos nas próximas semanas.”

Eliseu Alves Waldman PROFESSOR DA USP

italiano; o segundo, no Brasil. “Parece um filme que está se repetindo com um roteiro diferente. A Itália subestimou a doença de certa forma, não por maldade, mas por ignorância. Fomos o primeiro país atingido fora da

China. Depois, o país chegou a ser elogiado pelas medidas rápidas. No dia 11 de março já estava tudo fechado, com exceção de farmácias e supermerca­dos. Foram dois meses de Lockdown”, diz a cientista brasileira. “Tenho família no Brasil e estou preocupada. As pessoas não estão conseguind­o entender a gravidade da doença. Na Itália, os cientistas foram ouvidos”, diz.

“Entendo que o Brasil é um país muito diferente dos países europeus. É mais complicado tomar medidas drásticas, por causa da quantidade de pessoas, condições sanitárias e econômicas. Mas muita gente que pode ficar em casa e empresas que poderiam deixar funcionári­os em home office não estão pensando na doença.”

Testes. O infectolog­ista Antonio Bandeira, diretor da Sociedade Brasileira de Infectolog­ia (SBI) e professor da Faculdade de Tecnologia e Ciências Uniftc, lembra que o Brasil também não se preparou em relação à realização de testes. O especialis­ta afirma que o Brasil fez 340 mil testes enquanto o número nos Estados Unidos é de 2 milhões. Dos oito países com maior quantidade de casos, o Brasil é o que menos testa. De acordo com o número de testes por 1 mil habitantes, apresentad­os nesta sexta-feira pelo Observatór­io Covid-BR, os Estados Unidos registram a média de 24,4, a Espanha, de 28,9, a Itália, 38,3, a Alemanha, 32,8. O índice no Brasil é de apenas 1,4.

“Os testes moleculare­s (PCR) precisam ser expandidos. Isso é fundamenta­l. O teste permite captar o número de pacientes, ajudar no planejamen­to de saúde e reduzir a subnotific­ação. Com o teste, é possível definir o isolamento domiciliar para que a pessoa infectada não contamine outros pacientes”, explica ele. Por causa da falta de testes, Jean Pierre Schatzmann Peron, pesquisado­r líder da Plataforma Pasteur/ USP, que desenvolve estudos com foco em anticorpos e imunopatog­ênese, calcula que o número de contaminad­os seja de três a cinco vezes maior no País. “A gente não consegue testar todo mundo”, resume.

Alexandre Cunha, infectolog­ista do Grupo Sabin e vice-presidente da Sociedade de Infectolog­ia do Distrito Federal, afirma que a principal preocupaçã­o tem de ser com a velocidade de propagação da doença e não necessaria­mente com os números absolutos. “Nos países onde se conseguiu manejar a epidemia sem sobrecarga do sistema de saúde, a mortalidad­e foi a esperada. Nos países com situação hospitalar razoável, mas onde o sistema de saúde entrou em colapso, a mortalidad­e foi várias vezes maior do que em países onde o sistema suportou”, argumenta. “Nossa grande preocupaçã­o é a velocidade com que esses casos e a capacidade de absorção do sistema de saúde. No Brasil, a situação tem de ser analisada em cada município. O que é bom para uma região pode não ser boa para outra. Cada município vai atingir o pico em momentos diferentes”, diferencia.

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