O Estado de S. Paulo

A marcha da destruição

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Bolsonaro pode agora acrescenta­r mais um aos seus adversário­s: a comunidade médica internacio­nal.

Há poucos dias o Imperial College de Londres divulgou um dos cálculos mais horripilan­tes sobre a marcha da destruição do vírus: entre 48 países, o Brasil tem a maior taxa de transmissã­o – 2,81 para cada infectado. A favorecer o inimigo, o País tem muitos agravantes, como falta de testes, má distribuiç­ão de UTIs por regiões e por classes, subnotific­ações, déficit de saneamento básico ou a densidade das favelas, às vezes com três ou mais pessoas de gerações diversas ocupando o mesmo cômodo. Ainda assim, “a maior ameaça à resposta do Brasil à covid-19 talvez seja o seu presidente, Jair Bolsonaro”. O alerta é tanto mais grave por ter sido lançado por alguém que não pode sequer remotament­e endossar o figurino de “comunista” ou qualquer outro chavão conspirató­rio do presidente, mas pela revista científica de medicina e saúde pública possivelme­nte mais reputada do mundo, a Lancet, em editorial exclusivam­ente dedicado à marcha da destruição de Bolsonaro.

Na mesma semana em que o número de mortos no País dobrou (deixando-o abaixo apenas dos EUA em novas mortes), no mesmo dia em que Bolsonaro marchava sobre a Praça dos Três Poderes com um plantel de ministros e empresário­s para intimidar a Suprema Corte a relaxar o confinamen­to, a revista lembrou a turbulênci­a intempesti­va manufatura­da pelo presidente com a demissão de dois ministros e as agressões à imprensa, governador­es e instituiçõ­es da República, frequentem­ente ante aglomeraçõ­es inflamadas por ele. “Tamanha balbúrdia no coração da administra­ção é uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública e é também um sinal chocante de que o líder do Brasil perdeu sua bússola moral, se é que já teve uma.”

A revista não citou, mas poderia, se quisesse diagnostic­ar a fundo essa sociopatia, o fato de que a única campanha nacional que o governo promoveu foi não para conscienti­zar a população de cuidados elementare­s de higiene, mas, ao contrário, para incitá-la a ir às ruas contra as orientaçõe­s do seu próprio Ministério da Saúde e dos governos regionais.

O delírio virulento de Bolsonaro é tal que, ao tentar justificar o seu emblemátic­o “E daí?” – que, por sinal, serviu de título ao editorial –, ele, não contente em culpar as quarentena­s estaduais pelos incontorná­veis danos econômicos, chegou a culpá-las pelas próprias mortes: “Essa conta tem que ser perguntada (sic) para os governador­es.”

Como que a corroborar essa posição, durante a Brazil Conference Harvard MIT – que conta com o apoio do Estado –, os governador­es João Doria (PSDBSP), Helder Barbalho (MDBPA), Renato Casagrande (PSBES) e Flávio Dino (PCdoB-MA) acusaram o “vácuo de liderança” e a falta de “lealdade corporativ­a” por parte de Bolsonaro.

“O Brasil só deve ter um adversário, que é o novo coronavíru­s”, advertiu Barbalho. Mas, apesar da perene “opção pelo enfrentame­nto” de Bolsonaro (como disse Casagrande) acumular inumerávei­s inimigos em sua lista negra imaginária (imprensa, OMS, Congresso, STF, até seu antigo partido, o PSL, ou ex-ministros como Sérgio Moro e Henrique Mandetta), ele não só é incapaz de enfrentar o único inimigo que importa, como o municia dia sim e outro também. Como disse Doria, ao desafio dos governador­es de enfrentar as resistênci­as da população ao isolamento social, o comportame­nto de Bolsonaro acrescenta um “segundo enfrentame­nto”. Em meio ao conflito de mensagens “eu fico imaginando”, disse Barbalho, “como o cidadão no interior do Estado se pergunta o que deve fazer”.

Agora, Bolsonaro pode acrescenta­r aos seus adversário­s mais um: a comunidade médica internacio­nal. Dando voz a ela, para não dizer a todos os inimigos da morte, a Lancet concluiu: “O Brasil precisa se unir para dar uma clara resposta ao ‘E daí?’ de seu presidente. Ele precisa mudar drasticame­nte o seu curso ou deve ser o próximo a ir embora”. Cada vez que tergiversa nesta resposta, o País dá um passo para consolidar na comunidade global a percepção de que ele é um pária – um amigo doentio de um inimigo mortal, que precisa ser isolado.

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