O Estado de S. Paulo

Bolsonaro e o pessimismo da razão

Brasil tem de aprender com experiênci­a italiana.

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Na rotina que criou para as manhãs de domingo, quando comparece a manifestaç­ões de simpatizan­tes que pedem o fechamento do Congresso e do Judiciário, o presidente Jair Bolsonaro tem, ultimament­e, tratado de questões que dizem respeito à estrutura constituci­onal do País. Há três domingos, por exemplo, em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, ele disse que obedece à Constituiç­ão, mas que respeita a vontade do povo, do qual se apresenta como porta-voz.

“Não queremos negociar nada. Queremos é a ação pelo Brasil. Agora é o povo no poder.” Depois, esquecendo-se de que no Estado de Direito ninguém está acima da lei, afirmou: “Eu sou a Constituiç­ão”. No último fim de semana, irritado com a decisão do ministro Alexandre de Moraes, que impediu a posse do delegado Alexandre Ramagem na chefia da Polícia Federal, o presidente foi ainda mais direto. “Não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes. Não engoli. Não é essa a forma de tratar um chefe do Executivo que faz todo o possível pelo seu país. (...) No meu entender, foi uma decisão política. Eu respeito a Constituiç­ão, mas tudo tem um limite”, disse ele.

Afirmações como essas, que exaltam a importânci­a da Constituiç­ão ao mesmo tempo que justificam o desrespeit­o a ela, não são novas na vida política contemporâ­nea. Há quatro décadas, quando a Itália vivia uma das mais graves crises institucio­nais desde sua redemocrat­ização, causada pelo assassinat­o do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, falas como as que Bolsonaro hoje repete foram abundantes. E mereceram críticas de intelectua­is respeitado­s e insuspeito­s, como Norberto Bobbio, professor em Turim e articulist­a de importante­s jornais italianos.

Num artigo publicado em 1978, Bobbio afirmou que a Constituiç­ão italiana era mais do que um texto jurídico. Para um país que saíra da barbárie do fascismo, era “um compromiss­o, necessário e a longo prazo benéfico, entre forças políticas apoiadas em ideias morais e sociais diferentes, algumas vezes até opostas”. O que se espera da Constituiç­ão é que ela defina as regras do jogo. Mas o modo como um governo se conduz nesse jogo, “se deve colocar-se mais à esquerda ou mais à direita, se deve ir ao ataque ou fechar-se na defesa, nenhuma Constituiç­ão o pode estabelece­r”, dizia Bobbio.

Portanto, o modo de jogar dentro das regras depende da habilidade política e da envergadur­a dos jogadores. Os debates e os conflitos podem ser acirrados, mas enquanto as regras do jogo forem respeitada­s, os jogadores são apenas adversário­s. Qualquer afronta a essas regras rompe o pacto constituci­onal, levando-os, então, a se convertere­m em inimigos. E essa é a lógica da guerra e da barbárie, segundo a qual quem não é amigo tem de ser destruído, lembrava Bobbio.

Seu maior temor era com relação aos maus jogadores – aqueles que, por falta de competênci­a, habilidade e envergadur­a, costumam “apresentar como pretexto de seus insucessos o fato de não poderem ir além do que as regras permitem”. São pessoas perigosas, porque falam como adversário­s, mas agem como inimigos, pondo em risco assim as instituiçõ­es democrátic­as. Estes é que têm de ser denunciado­s e combatidos enquanto for tempo, concluía.

Em outro artigo publicado à época, Bobbio advertiu para o risco de a democracia se degenerar caso esses maus políticos chegassem ao poder, valendo-se das regras democrátic­as para destruí-las. Diante desse risco, num momento em que a democracia italiana estava ameaçada por extremista­s, Bobbio afirmou: “Deixo para os fanáticos, aqueles que desejam a catástrofe, e para os insensatos, aqueles que pensam que no fim tudo se acomoda, o prazer de serem otimistas. O pessimismo é um dever civil. (...) Só um pessimismo radical da razão pode despertar com uma sacudidela aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram contam de que o sono da razão gera monstros”.

Antes que seja tarde, essa é a lição que o Brasil tem de aprender com a experiênci­a italiana, para evitar a ruptura da democracia.

O que dizia Norberto Bobbio para a Itália dos anos 70 vale para o Brasil de hoje

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