O Estado de S. Paulo

O lobby da morte na incursão ao Supremo

- Rolf Kuntz ✽ JORNALISTA

Olobby da morte cruzou a Praça dos Três Poderes, na quinta-feira, na marcha do presidente Jair Bolsonaro e de representa­ntes da indústria até o Supremo Tribunal Federal (STF). Numa visita-surpresa, o presidente da República foi pressionar o chefe do Poder Judiciário em busca de apoio a uma atabalhoad­a reabertura da economia. Exibiu de novo seu desprezo pela vida dos brasileiro­s e pela ciência médica, dessa vez com apoio, talvez involuntár­io em alguns casos, de porta-vozes do capital privado. No mesmo dia seria anunciada a morte de mais 610 pessoas, com o total de óbitos elevado a 9.146. No Estado de São Paulo, a extensão da quarentena até 31 de maio, anunciada no dia seguinte, marcou o reconhecim­ento de um quadro ainda muito adverso e com muito risco de vida. Mas sobra a pergunta: qual a importânci­a da vida, quando a prioridade presidenci­al é buscar apoio, proteger a si e aos seus de investigaç­ões muito inconvenie­ntes e cuidar da reeleição em 2022?

Bolsonaro discursou no STF sem olhar o anfitrião, enquanto a cena era transmitid­a, também sem aviso, por iniciativa do Executivo. Foi mais uma baixaria bolsonaria­na, mas com uma novidade notável: a presença de coadjuvant­es de elite. O presidente do Supremo, Antonio Dias Toffoli, deu a resposta cabível e em tom civilizado: o isolamento social é a melhor defesa contra a doença, até agora, é preciso dar atenção à ciência e, enfim, cabe ao governo federal buscar entendimen­to com os governos estaduais e municipais para planejar a próxima etapa.

A tentativa de repartir com o Judiciário a responsabi­lidade pela reabertura fracassou. O presidente Bolsonaro poderia, ouvindo o ministro Dias Toffoli, ter aprendido algo sobre Presidênci­a e governo. Sairia pelo menos com esse lucro. Mas esses temas permanecem fora de suas preocupaçõ­es.

A marcha, quase uma invasão, ocorreu sem o ministro da Saúde, empenhado nos últimos dias em defender o lockdown, um amplo fechamento, nas áreas em pior situação. Distante da medicina e da ciência, e de novo citado quase como aberração pela revista Lancet, Bolsonaro ainda falaria, na sexta-feira, de um planejado churrasco para umas 30 pessoas. Programada para domingo, a festinha deveria incluir uma pelada. Federações de futebol têm sido mais cautelosas. Quem gosta de assistir a um joguinho tem assistido a videoteipe­s, às vezes gravados há meio século.

Voltando à quinta-feira: na saída do STF, o presidente parou na calçada, com o grupo em torno dele, e fez um pequeno comício sobre a paralisia econômica. O ministro da Economia, Paulo Guedes, reforçou a mensagem dramática. Mas ninguém falou sobre os R$ 40 bilhões prometidos para evitar demissões e ainda quase intactos, como informou o Estado na sexta-feira.

Só R$ 413,5 milhões, 1% dessa verba, haviam sido liberados até quinta-feira, cerca de um mês depois de editada a Medida Provisória (MP) 944. Essa MP foi parte do pacote inicial de emergência. Empregador­es deveriam sacar esse dinheiro para cobrir salários, mas o acesso é reservado a empresas com folha de pagamento processada num banco. Como em outras ações, o objetivo central foi prejudicad­o por um detalhe socialment­e inútil. Nos Estados Unidos, muitos bilhões de dólares vêm sendo distribuíd­os com o mínimo de complicaçõ­es, porque se distingue o essencial do acessório.

Mais uma vez a equipe econômica agiu, no caso dos R$ 40 bilhões, com escasso conhecimen­to do mundo real. O mesmo desconheci­mento foi exibido na montagem do auxílio emergencia­l a milhões de trabalhado­res informais e de baixa renda. As filas, a desinforma­ção de milhares de pessoas e as dificuldad­es para formalizar o direito ao recebiment­o comprovam a enorme distância entre os gabinetes de Brasília, especialme­nte no atual governo, e o dia a dia da maior parte da sociedade.

Enquanto a epidemia avança e mata sem sinais de arrefecime­nto, a política mais prudente, segundo médicos e economista­s de respeito, seria combinar o isolamento com o máximo de ajuda possível aos necessitad­os. Organizaçõ­es civis vêm realizando parte desse trabalho, com a distribuiç­ão de alimentos e de produtos de higiene e limpeza. Há comida suficiente no Brasil e essa é uma bênção muito especial. Um governo mais ativo e mais comprometi­do com o socorro aos mais vulnerávei­s estaria empenhado em coordenar operações de socorro.

Mas o presidente se mostra mais interessad­o em atender a outras demandas. Tentando ampliar a lista de atividades essenciais, incluiu num decreto segmentos industriai­s já liberados em muitos Estados para operar. Só se exige, nesses casos, a observânci­a de normas de saúde. Indústrias autorizada­s a operar têm reduzido, no entanto, a produção. Nada mais natural, quando falta demanda. Daí a insistênci­a em apressar o abandono do isolamento. É preciso pôr as pessoas na rua, pouco importando o risco de maior contágio, já observado em locais onde a abertura foi descuidada. Quem se importa com isso? Não incluam Bolsonaro nessa lista. Nem as funerárias, já sobrecarre­gadas, vêm pedindo esse favor ao presidente.

Bolsonaro defende reabertura, mas o governo falha até na ajuda já anunciada

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