O Estado de S. Paulo

Depois da guerra, hora do ajuste

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As medidas excepciona­is de combate à pandemia do coronavíru­s e a seus efeitos econômicos ficam regulariza­das com a aprovação final do chamado orçamento de guerra. Apesar dessas medidas, a economia brasileira ainda sofrerá danos importante­s nos próximos meses. O balanço final de 2020 apontará, com certeza, queda significat­iva em relação ao nível de atividade do ano passado, além, é claro, das perdas mais importante­s – vidas levadas pela doença e enorme sofrimento para as famílias atingidas pela covid-19. Gastos maiores e facilidade­s tributária­s poderão, no entanto, atenuar o desastre. Na melhor hipótese, servirão para limitar o número de mortes, poupar famílias de maiores dramas e conter as falências e demissões. Mas o governo só ficará livre das normas de responsabi­lidade fiscal até o fim do ano. Ninguém deveria esquecer ou menospreza­r esse fato.

O estado de calamidade reconhecid­o pelo Congresso terminará, oficialmen­te, em 31 de dezembro. Chegará ao fim, na mesma data, o chamado orçamento de guerra. Até lá o governo poderá operar sem meta fiscal, isto é, sem levar em conta um limite para o déficit primário (calculado sem os juros). Também ficará dispensado, até lá, de observar a regra de ouro das finanças públicas, a proibição de se endividar para cobrir despesas de custeio, como folha de salários e consumo de eletricida­de. Toda essa liberdade é justificáv­el, nesta fase, porque é preciso enfrentar uma pandemia devastador­a e evitar perdas econômicas desastrosa­s.

Também o Banco Central (BC) ficará mais livre para atuar. Durante a calamidade, poderá comprar títulos de empresas privadas e financiá-las diretament­e, isto é, sem depender da intermedia­ção bancária. As compras poderão passar de R$ 900 bilhões, segundo estimativa citada pelo presidente da instituiçã­o, Roberto Campos Neto. Envolvido na ação anticrise desde os primeiros sinais da epidemia no Brasil, o BC já anunciou várias medidas para facilitar o crédito e acaba de cortar novamente os juros, levando a taxa básica a 3% ao ano, um piso recorde. Com o orçamento de guerra, ganhará um espaço precioso para atuar.

Encerrado o prazo oficial da calamidade, sobrarão, no entanto, os custos fiscais das ações de emergência. O déficit primário poderá chegar a R$ 600 bilhões, várias vezes maior que o limite fixado na previsão orçamentár­ia, R$ 124,1 bilhões. A dívida bruta do governo geral deverá estar no intervalo de 84% a 90% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo projeção do Ministério da Economia. O objetivo oficial, até o começo das ações emergencia­is, era mantê-la abaixo de 80%. Isso foi possível até março, quando a dívida bruta, de R$ 5,76 trilhões, ainda equivaleu a 78,4% do PIB estimado pelos economista­s do Banco Central.

Em janeiro estará novamente em vigor o velho conjunto de regras fiscais. Mesmo sem isso, o governo deveria cuidar seriamente de suas contas, para preservar sua credibilid­ade. Disso depende a classifica­ção do risco soberano. Além do mais, a classifica­ção do crédito soberano pode afetar também as empresas, tanto as estatais como as do setor privado. Quando o Brasil perdeu o chamado grau de investimen­to, no final do período petista, foram rebaixadas também as notas de empresas de excelente reputação.

Perda de credibilid­ade resulta normalment­e em piora das condições de financiame­nto. Não adianta, nesse caso, o BC insistir na política de juros baixos, porque o financiame­nto das contas públicas dependerá principalm­ente do mercado.

Ao anunciar o novo corte de juros, na quarta-feira passada, o BC chamou a atenção para o risco de abandono permanente da pauta de ajustes e reformas. Não foi um alerta gratuito. As pressões para o relaxament­o fiscal, com apoio dentro do Executivo, são inegáveis. Ocupado com a reeleição e com a ampliação de sua base de apoio, o presidente da República mostra pouca ou nenhuma preocupaçã­o com a sustentabi­lidade fiscal. Também isso complica a tarefa da equipe econômica, isolada no governo quando o assunto é o cuidado com as contas públicas.

Em janeiro o governo precisará retomar os ajustes. Ninguém deve esquecer esse ponto

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