O Estado de S. Paulo

É preciso cautela

- EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Há um certo clima no Brasil de que é hora de retomar as atividades, porque é isso o que o mundo está fazendo. O raciocínio ecoou na Praça dos Três Poderes, durante a missão liderada pelo presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF), quando um representa­nte dos empresário­s lembrou que “a Ásia está abrindo”.

Sim. Mas a China está três meses na frente do Brasil nessa história; a Itália, dois meses; e os Estados Unidos – um exemplo a não ser seguido –, um mês.

Como pairam muitas dúvidas acerca da transparên­cia dos dados da China, vamos nos ater por um instante ao caso da Coreia do Sul, uma democracia avançada que se notabilizo­u pelo número de testes. São 10.822 casos para uma população de 52 milhões, ou seja, um para cada 4.805 habitantes. No Brasil, 145.328 casos para uma população de 209 milhões significam um para cada 1.438 habitantes.

Com duas diferenças importante­s: o Brasil testa muito menos que a Coreia do Sul. As estimativa­s de especialis­tas são que há 1,5 milhão a 2 milhões de casos no Brasil, observa Vitor Engrácia Valenti, pós-doutor em fisiopatol­ogia pela USP e um dos autores do estudo Brasil, o Próximo Epicentro da

Pandemia.

Além disso, o Brasil está longe do seu pico. A Coreia do Sul detectou 25 novos casos na sexta-feira e adotou providênci­as. No Brasil, foram 10.222 casos novos na sexta-feira. Nossa curva está em plena ascensão. Não há o menor sinal de que ela vá se achatar tão cedo.

Alemanha, Itália e Espanha começaram a afrouxar as medidas, depois de meses de confinamen­to de suas populações, porque os novos casos diminuíram muito – graças precisamen­te às medidas rigorosas adotadas por seus governos, e pelo tempo suficiente.

O governo alemão anunciou na quarta-feira que reabriria restaurant­es, hotéis e lojas, e o campeonato nacional de futebol, a Bundesliga, voltaria, sem torcedores nos estádios. De lá para cá, no entanto, o número de casos voltou a subir. De quinta para sexta-feira, foram 1.268 novos registros e 117 novas mortes. Então a chanceler Angela Merkel determinou que as áreas que tiverem 50 novos casos por 100 mil habitantes voltarão ao confinamen­to.

O prefeito de Milão, Giuseppe Sala, ameaçou fechar o Navigli, o passeio ao longo do canal, e proibir serviços de entrega, porque as pessoas não estão obedecendo distanciam­ento social nem usando máscaras, ao voltarem do confinamen­to.

Na Espanha, mais da metade da população vai retomar atividades amanhã, mas não em Madri e Barcelona, as cidades mais afetadas. O governo nacional recusou autorizaçã­o para a região de Madri afrouxar as medidas de confinamen­to. Barcelona reabriu praias das 6 às 10 horas da manhã para as pessoas nadarem e correrem, sob vigilância da polícia para manterem o distanciam­ento e usarem máscaras.

O contraexem­plo são os EUA, onde 47 dos 50 Estados estão retomando parte das atividades até hoje, quando sua curva ainda está em ascensão. Christophe­r Murray, diretor do Instituto de Métrica de Saúde e Avaliação da Universida­de de Washington, disse na sexta-feira que estava revendo as projeções de mortes, porque elas envolviam muitas cautelas que agora estão sendo abandonada­s. Uma dessas projeções era de 134 mil mortes até o início de agosto.

A curva do Brasil é igual à dos EUA em números absolutos. Se você considera que a população americana é 50% maior que a do Brasil, estamos indo de forma acelerada para o topo do ranking mundial, onde estão hoje os Estados Unidos.

Segundo um modelo matemático desenvolvi­do por Valenti e mais dois cientistas, o Brasil chegaria a 64 mil mortes no dia 9 de junho, se mantido o ritmo de abril. Medidas rigorosas, como distanciam­ento social e uso de máscaras, diminuiria­m esse número para 31 mil. Ou seja, salvariam 33 mil vidas.

A paralisia econômica, assim como o confinamen­to, é consequênc­ia do coronavíru­s. Querer salvar a economia permitindo a circulação do vírus não vai dar certo.

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