O Estado de S. Paulo

‘A minha família não procurou, mas o raio caiu na minha casa’

Parentes de vítimas contam histórias de um luto que parece não ter fim e defendem que se fique em casa

- Felipe Resk

Na família, ninguém escapou da covid-19. A mãe Maristela Andreoli, de 58 anos, foi a primeira a manifestar sintoma: uma dor forte lhe martelava a cabeça sem parar. Logo depois os filhos começaram a tossir, perderam olfato, não sentiam mais o gosto da comida. Até febre e dor no corpo a mais nova teve. Ajudando a cuidar de todos, o pai e empresário Carlos Eduardo Andreoli, de 59, era diabético e adoeceu por último. “Meu marido saiu de casa bem, para tomar insulina, e nunca mais voltou.”

No dia em que o Brasil ultrapasso­u a marca de 10 mil mortos pelo novo coronavíru­s, famílias relataram ao Estado histórias por trás do número de vítimas da pandemia. Em comum, demonstram preocupaçã­o com desrespeit­os às medidas de isolamento social no País e descrevem o comportame­nto de uma doença traiçoeira que, agora, as obriga a lidar com a ausência de pessoas amadas.

Seis semanas após o sepultamen­to,

“Não vimos ele morto. Não enterramos. Não fizemos nenhuma despedida. Aqui, a gente reveza: quando um chora, o outro ajuda.”

Maristela Andreoli SOBREVIVEN­TE DA COVID-19

que só pôde ser acompanhad­o a distância pela família, Maristela diz que vive a morte de Andreoli diariament­e. “A gente não viu ainda nossos familiares, não pudemos abraçar ou ser consolados. Estamos fechados dentro de casa, com todas as lembranças do meu marido, o tempo inteiro. É como se ele tivesse morrido ontem. Todos os dias são iguaizinho­s.”

Mesmo com a renda interrompi­da pelo fechamento de serviços não essenciais, Maristela diz que o isolamento só deve ser flexibiliz­ado quando o número de casos começar a cair. “É muito importante parar essa roleta-russa. A minha família não procurou, mas o raio caiu na minha casa. Podia ser na casa de qualquer um. Ninguém está livre da doença. O que me revolta, hoje, é que estamos esticando esse assunto porque boa parte das pessoas não está nem aí para os outros. Se tivéssemos feito o isolamento direitinho desde o começo, nos resguardan­do, já poderíamos estar retomando nosso dia a dia”, afirma ela. “Só depende da gente assumir que é nossa responsabi­lidade parar de transmitir. Por causa dessas pessoas, estamos sofrendo e pagando uma conta muito alta.”

Pelo celular. O sepultamen­to não demorou mais do que dez minutos. No cemitério em Paulista, no Grande Recife, o empresário Aécio Prado Júnior, de 33 anos, estava sozinho ao lado do caixão do pai, José Aécio, de 80, vítima da covid-19. “Tive de transmitir pelo celular e ficar mandando foto para a minha família: ‘como estava a coroa de flor, gravar o funcionári­o fechando o túmulo...’ Infelizmen­te, tive de criar registro daquilo que, normalment­e, ninguém quer ficar lembrando.”

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