O Estado de S. Paulo

Naldinho morreu

- UGO GIORGETTI E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Em 1997, fiz um filme chamado Boleiros. Havia um personagem, entre muitos outros, que me preocupava bastante. Eu precisava de um ator excepciona­lmente dotado para interpreta­r um antigo astro do Corinthian­s, do começo dos anos 50, que se tinha transforma­do num velho cansado, amargurado, descrente e envergonha­do da velhice que o atingia em cheio.

No Brasil um diretor, se tiver paciência, sempre encontra o ator que está procurando. Não me surpreendi quando, no meio de uma reunião, quebrando a cabeça para fazer essa escolha, surgiu o nome de Flavio Migliaccio. Para mim a pesquisa tinha terminado ali.

Liguei para ele na hora e dias depois fui recebê-lo em Congonhas para acertar tudo. Veio caminhando discretame­nte, no meio das pessoas que saiam do avião, com um andar de boleiro. Indefiníve­l, mas reconhecív­el para quem conhece o assunto. Nunca lhe perguntei se aquele caminhar já era uma personific­ação do personagem. Talvez fosse natural, Flávio era boleiro e entendia do assunto. Mas talvez não fosse natural e ele tivesse ensaiado infatigave­lmente, como era seu costume, para já chegar com o andar do personagem.

Seu trabalho foi admirável e está lá no filme para quem quiser ver. Naldinho, o veterano desiludido que olha ao seu redor e nada mais vê que valha a pena, a começar dele mesmo.

Corte rápido, como nos filmes, para 2020. Flávio Migliaccio, olhou por sua vez ao redor e chegou às mesmas conclusões que seu personagem de Boleiros. Matou-se, como talvez o fizesse o personagem do filme, caso o filme seguisse sua história até o fim.

Flávio foi até o fim. Deixou uma mensagem, dura, escrita com uma caneta Bic vermelha, num pedaço de papel comum. Pessoal, de próprio punho, sem interferên­cias de computador­es ou máquinas, direta. “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice nesse País é um caos, como tudo aqui. Eu tive a impressão de 85 anos jogados fora num País como este.”

Realmente este País se tornou homicida em relação aos velhos. Talvez sempre tenha sido, mas não explicitam­ente. Pode ser que Flávio tomou a decisão final quando percebeu que o discurso de abrir a economia feito sem cessar pelo presidente da República e seu ministro da Economia ocultava, não tão bem, aliás, a mensagem que ainda não se permitem dizer claramente: essa pandemia mata velhos que não têm valor econômico algum. Enquanto alguém se preocupar com eles a economia não vai andar.

Em outras palavras, essa atenção à velhice custa dinheiro a quem de modo algum está disposto a perdê-lo. O problema, portanto, é gente como Flávio Migliaccio. Mas não é tudo. Além de ser velho, Flávio era um artista, portanto duplamente odiado pelo poder.

Jamais se despejou tanto ódio contra a classe artística durante qualquer um dos poucos intervalos de democracia que este País viveu. Nem durante as ditaduras. Sempre havia um Gustavo Capanema para dar pelo menos um aceno à cultura de que os caminhos não estavam inteiramen­te obstruídos.

Nunca se chegou ao ponto do insulto gratuito e da sensação de que se almeja no fundo o extermínio físico de uma classe de pessoas. Nunca se viu imprensa, cinema, teatro, literatura, ciências humanas, e o pensamento crítico em geral, tratados dessa maneira. É isso que finalmente faz com que artistas como Flávio Migliaccio escrevam “desculpem, mas não deu mais”.

Naldinho diria a mesma coisa. É um engano, porém, achar que se pode aniquilar essa invenção grega, razão e liberdade. Esse patrimônio da humanidade será conservado, não haja dúvidas. Mesmo que, como dizia Otavio Paz “em tempos terríveis a arte tem que se dar nos subterrâne­os da sociedade”. Quem quiser ler um depoimento sobre Flávio Migliaccio muito melhor do que o meu procure na internet o do Lima Duarte, ele também ator brilhante do mesmo Boleiros, ainda vivo e reagindo. Mas Naldinho morreu.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil