O Estado de S. Paulo

O homem que definiu o exato instante em que o rock ganha vida

- Julio Maria

Há um lugar no rock and roll localizado em algum milésimo do segundo em que a voz do cantor entra no tempo fraco do compasso quando nenhum compasso ainda existe, antecipa-se à banda quando os músicos ainda se ajustam e suspende no ar algo como um martelo que despenca no segundo seguinte com suas três toneladas de uma massa formada por bateria, baixo, piano, guitarra, sopros e aquilo que já não será mais uma voz. Um grito distorcido, um chamado ou qualquer coisa que, na alvorada dos anos 1950, quando os meninos brancos começaram a burlar as regras de não caminhar pelos bairros negros para não se contaminar com o blues que eles faziam, os pastores da Igreja diziam ser a voz do demônio sem saber que, na verdade, só era a voz de Little Richard.

Se começar a cantar agora mesmo Tutti-Frutti, a voz antecipada estará lá. Se lembrar-se de Good Golly Miss Molly, estará também. Apenas ouça A Whole Lotta Shakin' Goin' On, já que cantar seria impossível, e, de novo, Little Richard usará a mesma senha. Mas, se ainda precisar, faça como os Beatles fizeram em 1964 e tente Long Tall Sally. Por uma, duas e três vezes, o mesmo martelo irá desabar no ato que definiu como seriam os próximos anos da vida de milhares jovens.

A criatura que saiu de Little Richard era tão violenta que, depois de sacramenta­r que o espírito do rock and roll estava nos primeiros segundos da voz e não da guitarra, como pregava Chuck Berry, de levar o acento funk do aprendiz James Brown para a sua base rítmica e de traficar a música proibida para os brancos hipnotizan­do-os, ela brigou com ele mesmo. Foi difícil para um homem crescido da Igreja Batista da Georgia entender o que o levava a pintar os lábios, alisar os cabelos e alongar os cílios para subir a um palco pronto para erguer um martelo sobre a humanidade. A essa altura ele já deve saber que aquela voz não era do diabo, mas de Deus.

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