PARES DO ‘BRUXO’ E MODERNOS EM ANÁLISES DENSAS
Segundo volume de ensaios sobre Machado, que vai de 1939 a 2008, traz análises de Glauber, Suassuna e Drummond
A editora Imprensa Oficial acaba de publicar o segundo volume da obra Escritor por Escritor: Machado de Assis Segundo seus Pares, que conta com a organização de Ieda Lebensztayn, doutora em Literatura Brasileira pela USP, com pós-doutorados na mesma área pelo Instituto de Estudos Brasileiros e pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, ambos ligados a USP, e Hélio de Seixas Guimarães, professor de Literatura Brasileira da USP.
Se o primeiro volume cobre o período de 1908, ano da morte de Machado, até 1939, ano do centenário do autor, e conta com textos críticos sobre a obra de Machado de autoria de importantes intelectuais e escritores, tais como Euclides da Cunha, Olavo Bilac, Lima Barreto, Mário de Andrade e Monteiro Lobato, o segundo volume, que vai de 1939 a 2008, nos brinda com análises e documentos de autores da envergadura de Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Oswald de Andrade e Rubem Braga, entre outros.
No prefácio O Sorriso do Bruxo no Espelho de Escritores, Ieda Lebensztayn discorre sobre a importância de Escritor por Escritor não só para iluminar a obra de Machado segundo seus pares, mas também para trazer à tona diálogos com as próprias criações dos autores que contribuem para a fortuna crítica machadiana: “Na medida em que refletiram sobre a vida e a obra de Machado de Assis, contemplando os vários gêneros a que ele se dedicou – romance, conto, crônica, crítica, teatro, poesia –, esses ficcionistas e poetas enriqueceram a fortuna crítica, contribuindo para se conhecerem e compreenderem melhor nosso grande escritor e o contexto histórico de sua época e até nossos dias. Ao mesmo tempo, ao desenvolverem interpretações sensíveis a respeito da singularidade de Machado, esses escritores deixam ver marcas da constituição de suas próprias literaturas”.
Ieda Lebensztayn também nos revela que, em mais de um século de fortuna crítica, somam-se imagens concernentes ao estilo de Machado, “joia de ouro de ideias, incrustada de ironia”, como destaca o poeta e romancista Antônio Sales. E merecem atenção sobretudo figurações do sorriso de Machado, a apontar como a ambiguidade entre ‘galhofa e melancolia’ inquieta os leitores. Além da rematada ironia, zombeteira e tragicamente pessimista, a organizadora elenca outros tópicos recorrentes da fortuna crítica e nos apresenta o homem Machado em seu cotidiano: “Também aqui comparecem a ausência de quintais, de descrições da natureza, o abstencionismo político, a sutileza da representação do erotismo, a impassibilidade, o relativismo de tudo. Ao mesmo tempo, recordações de contemporâneos deixam ver a face de afabilidade por trás da máscara, junto com a seriedade e o empenho pelo trabalho e pela criação de sua obra e da Academia Brasileira de Letras”.
Entre os textos que compõem Escritor por Escritor, destaco O Retrato, do poeta Carlos Drummond de Andrade, em que o autor aguça nossa empatia ao revelar que o filho do doutor Carneiro de Sousa Bandeira, amigo de Machado, costumava conversar com o escritor a bordo de um bonde no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
À época um jovem colegial, o recifense e futuro poeta Manuel Bandeira falava sobre literatura com um Machado que, a despeito de seu pessimismo existencial, se lhe mostrava bastante afável.
Vale muito a pena, ademais, a leitura de Fala Machado, diálogo entre o escritor e cronista capixaba Rubem Braga e o próprio Machado, ao longo do qual o primeiro formula perguntas e invoca o segundo nas respostas: “Eu podia usar o espiritismo ou a imaginação, mas preferi compor as respostas de Machado com palavras rigorosamente suas, frases tiradas de crônicas, romances ou contos”.
É assim que, diante da pergunta “E esses camaradas que estão sempre na oposição?”, desponta como resposta um trecho do romance Esaú e Jacó que, talvez, sintetize o Brasil dos últimos anos: “O homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição”. Quando Braga interpela Machado sobre o valor do trabalho, lemos um fragmento da crônica A Semana: “O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas”. Em tempos de polpudas ajudas públicas a instituições financeiras e mirradas contribuições estatais para os desempregados e desvalidos da crise econômica acirrada pelo coronavírus, tal colocação bem nos mostra por que Machado de Assis, em sua argúcia sempre atual, era chamado de “bruxo”.
✽ É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY. É AUTOR DE ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA, 2019).