O Estado de S. Paulo

Auxílio emergencia­l e clientelis­mo

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Não são pequenas as chances de que a tradição clientelis­ta se imponha com o auxílio emergencia­l, ainda que sua transforma­ção em permanente encontre dura resistênci­a na realidade.

Oestablish­ment político já calcula os prováveis ganhos eleitorais advindos do pagamento do auxílio emergencia­l de R$ 600 para os trabalhado­res informais que perderam renda em razão da pandemia de covid-19. Como sempre, esse cálculo ignora as tremendas restrições fiscais do País e, sobretudo, trata a crônica desigualda­de de renda como oportunida­de para cultivar clientes entre os mais pobres.

Desse modo, tanto o atual governo federal como a atual legislatur­a no Congresso, constituíd­os de políticos que se elegeram com a barulhenta promessa de demolir o sistema corrupto que perpetua a desigualda­de, agem como os velhos coronéis da Primeira República, cujo poder se assentava no mandonismo e na relação paternalis­ta com os eleitores das regiões remotas, dependente­s em tudo do Estado. A pandemia revelou que nosso atraso vai muito além do esperado recuo inédito do Produto Interno Bruto – estamos retroceden­do mais de um século também na política, que, conforme anunciado pelo bolsonaris­mo, deveria ser “nova”.

A bem da verdade, esse processo já vinha acontecend­o muito antes, e parecia ter encontrado seu zênite nos governos lulopetist­as. O Bolsa Família, reunião de diversos programas de transferên­cia de renda e auxílio social já existentes, tornou-se a marca mais vistosa da Presidênci­a de Lula da Silva e de Dilma Rousseff. Desde que o primeiro benefício do Bolsa Família – que deveria ser um instrument­o de ascensão social – começou a ser pago, os mapas eleitorais mostram a gratidão dos eleitores beneficiad­os, na forma de maciças votações em favor dos candidatos do PT, em especial na Região Nordeste, particular­mente castigada pela pobreza crônica.

Há, portanto, um padrão de exploração da miséria com a finalidade de garantir uma base eleitoral suficiente para a perpetuaçã­o no poder. Nem a bolsonaris­tas nem a lulopetist­as interessa a desgastant­e discussão de mecanismos de redução da desigualda­de de renda que impliquem grandes e duras reformas, com vista a ampliar as oportunida­des reais de ascensão social das camadas mais pobres da população. É sempre bom lembrar que a “nova classe média” festejada nos anos dourados do lulopetism­o no poder tinha celular e TV de plasma, mas tinha também esgoto correndo a céu aberto na porta de casa.

O saneamento básico insuficien­te é apenas a face mais vergonhosa de um atraso que, de tão persistent­e, só pode ser proposital. Enquanto o presidente da República perde o precioso tempo dos brasileiro­s com questiúncu­las como “ideologia de gênero” e radares nas estradas, quase nada se fez para melhorar o ambiente de negócios no País, ponto de partida para qualquer programa que vise a impulsiona­r a produtivid­ade e, consequent­emente, a elevar a renda dos brasileiro­s sem necessidad­e de estimulant­es demagógico­s.

É claro que a emergência causada pela pandemia obriga o poder público a agir prontament­e de maneira a conferir um mínimo de proteção aos que, de uma hora para outra, viram sua renda desaparece­r. É questão de vida ou morte. O problema é a tentação populista, a mesma que presidiu a transforma­ção do Bolsa Família, que deveria ser temporário, em expansão permanente e contínua.

E o oportunism­o pode se dar de diversas maneiras. O governo parece ter encontrado no pagamento do auxílio emergencia­l uma excelente ocasião, por exemplo, para expandir a atuação da Caixa Econômica Federal no País, abrindo milhões de contas no banco estatal não só para os beneficiár­ios sem conta em banco, mas também para os que já são clientes de outros bancos. Não satisfeita, a Caixa estuda abrir contas para beneficiár­ios do Bolsa Família, que hoje podem sacar seu dinheiro até em lotéricas. Nada como uma boa desculpa para ampliar a carteira de clientes do banco estatal.

Assim, ainda que a transforma­ção do auxílio emergencia­l em permanente encontre dura resistênci­a da realidade – o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, informou que isso é “fiscalment­e impossível” –, não são pequenas as chances de que a tradição clientelis­ta se imponha mais uma vez. Será surpresa se, afinal, a preocupaçã­o com a sustentabi­lidade fiscal de longo prazo prevalecer sobre o mais rasteiro interesse eleitoral.

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