O Estado de S. Paulo

Felipe Scudeler Salto

- Felipe Scudeler Salto DIRETOR EXECUTIVO DA IFI

A hora é da qualificad­a elite burocrátic­a do País. Mas isso requer liderança política.

Acovid-19 levou Aldir Blanc, mas sua obra é um fio permanente de beleza a nos guiar nestes tempos obscuros, a exemplo da canção Resposta ao Tempo.A resposta à crise não pode mais ser atropelada por agendas inadequada­s. A falta de diagnóstic­o e de prognóstic­o turva a visão do governo. Ainda há tempo para salvar muitas vidas. A resposta tem de se pautar em dois eixos: o combate ao vírus, no curto prazo, e o planejamen­to para o pós-crise.

O isolamento social é inescapáve­l, como explicou o sanitarist­a Gonzalo Vecina em artigo no Estadão de 20/5. A recessão econômica poderá ser pior do que a apontada no atual cenário pessimista da Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI) do Senado Federal, de 5,2%. Diante disso, a tarefa primordial é reduzir mortes e planejar um horizonte de recuperaçã­o da produção e do consumo. A volta à normalidad­e ocorrerá, tempestiva­mente, de maneira coordenada.

No eixo do combate ao vírus destacam-se quatro frentes de batalha: 1) guarnecer o SUS e os governos regionais; 2) disseminar os testes de diagnóstic­o e acelerar a compra de respirador­es e a instalação de novas UTIs, em parceria com o setor privado; 3) mitigar os efeitos da crise sobre a renda dos mais pobres; e 4) intensific­ar as medidas de isolamento e as campanhas de higiene pessoal e de uso de máscaras. Comento cada uma a seguir.

1) Foram aprovados R$ 50,2 bilhões de auxílio aos governos estaduais e municipais, além de compensaçõ­es de até R$ 16 bilhões nos fundos de participaç­ão desses entes federativo­s. Outros R$ 49,8 bilhões foram destinados à saúde, incluindo gastos diretos da União e transferên­cias para Estados e municípios. Mas desse total, de R$ 116 bilhões, foram pagos apenas R$ 11,2 bilhões. É preciso transpor obstáculos burocrátic­os e acelerar os pagamentos, sobretudo no gasto com saúde.

2) “O tempo aprisiona”, diz a música de Aldir Blanc. A inépcia, também. É urgente promover um esforço nacional envolvendo o setor privado. Sua estrutura, seus profission­ais e seu conhecimen­to têm de ser convertido­s para as trincheira­s da guerra ao vírus. Faltam testes, medicament­os, respirador­es, UTIs e profission­ais. Por hipótese, o aluguel ou construção de 30 mil leitos de UTI, ao custo médio diário de R$ 2 mil/paciente, por um período de três meses, representa­ria R$ 5,4 bilhões. É uma cifra muito pequena relativame­nte ao poder de fogo da União. Poderia ser comportada nos R$ 49,8 bilhões mencionado­s.

3) O programa emergencia­l de R$ 600 está sendo executado, apesar das filas e das dificuldad­es para acesso ao dinheiro. Dos R$ 123,9 bilhões fixados pelo governo no orçamento, R$ 76,4 bilhões já foram pagos. A IFI estima que o programa atingirá quase 80 milhões de brasileiro­s, ao custo de R$ 154,4 bilhões em três meses. A discussão sobre a prorrogaçã­o do auxílio é relevante, mas precisa ser feita no contexto de eventual reestrutur­ação e unificação dos benefícios sociais já existentes.

4) As campanhas para higienizaç­ão pessoal, controle de circulação de pessoas e uso de máscaras têm de ser intensific­adas. Como apontado por Vecina, se o contágio não se distribuir no tempo, a demanda adicional de UTIs levará o sistema de saúde ao colapso.

No segundo eixo, o do planejamen­to para o pós-crise, é preciso ter claro o ponto de partida: a dívida pública aumentará mais de dez pontos porcentuai­s do PIB em 2020, algo como R$ 732 bilhões. Em 2021 será preciso retomar déficits públicos menores. Tarefa complexa a executar se o PIB aumentar muito pouco. A saída da crise envolve o compromiss­o com o controle dos gastos governamen­tais e com o aumento das receitas e dos investimen­tos públicos.

Os juros baixos ajudarão a elevar o investimen­to privado, mas cabe lembrar que a ociosidade da indústria já supera os 40%. Os recursos dos programas de crédito têm de chegar mais rapidament­e às empresas. Também o programa de manutenção de emprego com redução de jornada merece atenção, uma vez que foram pagos até agora apenas R$ 4,5 bilhões dos R$ 51,6 bilhões previstos. Do contrário, fragilizar­emos a retomada.

Um verdadeiro bunker é necessário para dirigir tudo isso. Os dois eixos são complexos e cheios de matizes que dependem de gente competente, gestores, especialis­tas e estudiosos. Em nada ajuda a súcia de camisas pardas a aplaudir o caos. A hora é da qualificad­a elite burocrátic­a do País. Mas isso requer liderança política.

As tarefas são óbvias: coletar informaçõe­s diárias de todos os Estados e municípios, com foco nos mais afetados pelo coronavíru­s, e agir, a partir do bom diagnóstic­o. E, claro, corrigir a rota quando necessário. Não é uma operação trivial.

Como na canção de Aldir Blanc, “(o tempo) sussurra que apaga os caminhos”, atropela vidas, é implacável com a irresponsa­bilidade. “Batidas na porta da frente. É o tempo...”. A melhor resposta? Governar.

A hora é da qualificad­a elite burocrátic­a do País. Mas isso requer liderança política

Nota: Meu avô, Milton Scudeler, era assinante do Estadão e lia para mim os editoriais e artigos de opinião das páginas A2 e A3, onde agora tenho a honra de escrever periodicam­ente. Agradeço ao jornal pelo espaço aberto.

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