O Estado de S. Paulo

Nenhum dia a mais

-

Adiar as eleições deste ano para 2021 significa indevida e ilegítima ampliação de mandato.

Diante da atual situação da pandemia de covid19, o Congresso anunciou que criará um grupo de trabalho, composto por deputados e senadores, para estudar a necessidad­e de adiar as eleições municipais. O primeiro turno está previsto para o dia 4 de outubro. É oportuno que o tema seja avaliado e debatido, tendo em vista tanto a gravidade do quadro sanitário do País como o fato de que todo o processo eleitoral – as convenções partidária­s, a campanha eleitoral e os dias de votação – envolve, em alguma medida, circulação e movimentaç­ão de pessoas, com efeitos sobre a transmissã­o do novo coronavíru­s.

A prudência recomenda, assim, que o assunto seja estudado. Se de fato for necessário, o pleito municipal deve ser adiado, e a alteração precisa ser feita por meio de uma Emenda Constituci­onal. No entanto, a mesma prudência recomenda não confundir adiamento das eleições com prorrogaçã­o de mandato. Uma coisa é atrasar, por força de circunstân­cias excepciona­is, as datas do primeiro e do segundo turno do pleito municipal, mantendo-as neste ano e assegurand­o que, no início de 2021, os novos prefeitos e vereadores eleitos assumam os respectivo­s cargos. Coisa completame­nte diferente é adiar as eleições deste ano para 2021, o que significar­ia prorrogar o atual mandato de prefeitos e vereadores. Neste caso, não haveria apenas uma mudança do calendário eleitoral, mas uma indevida e ilegítima ampliação do mandato popular.

Não cabe ao Poder Legislativ­o estender mandato político de quem quer que seja. O voto conferiu aos atuais prefeitos e vereadores um mandato determinad­o, que termina em 31 de dezembro deste ano. Eventual prorrogaçã­o do mandato representa­ria exercício de poder político além do que foi conferido nas urnas, o que contraria o Estado Democrátic­o de Direito.

“Na discussão com os líderes (dos partidos) é posição quase de unanimidad­e que devemos ter adiamento, mas sem prorrogaçã­o de nenhum mandato”, disse o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEMAP), expressou-se em termos semelhante­s: “Temos acompanhad­o, nos últimos dias, essa aflição dos brasileiro­s em relação ao problema de saúde pública e, naturalmen­te, a preocupaçã­o com a democracia”. No mês passado, o ministro Luís Roberto Barroso, que assumirá em breve a presidênci­a do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), também descartou a possibilid­ade de levar as disputas municipais para o ano que vem.

É tranquiliz­ador que as autoridade­s envolvidas tenham clareza a respeito desse assunto, sem dubiedades ou oportunism­os que poderiam ser desastroso­s para o País. Eventual adiamento das eleições municipais deve servir para resolver um problema, e não para criar outro ainda maior. A alteração do calendário eleitoral pode contribuir para os esforços no enfrentame­nto do novo coronavíru­s. Já transforma­r o adiamento das eleições em uma prorrogaçã­o de mandato popular significar­ia transigir com princípio fundamenta­l da democracia.

Diante das atuais dimensões da pandemia e do que ela ainda pode causar nos próximos meses, talvez alguém possa achar desproporc­ional essa radical objeção a toda e qualquer prorrogaçã­o de mandato. Segundo esse raciocínio, dar aos atuais prefeitos e vereadores mais alguns meses no cargo, por exemplo, não seria assim tão desastroso. Em primeiro lugar, tal pensamento manifesta uma avaliação equivocada sobre os mandatos de prefeito e vereador, como se fossem pouco relevantes. O exercício do poder político na esfera municipal deve estar necessaria­mente respaldado pelo voto. Além disso, a violação do mandato popular daria ensejo a um perigosíss­imo precedente, com potencial de causar enormes problemas futuros – e não só na esfera municipal.

Numa democracia, há pontos inegociáve­is, nos quais não se mexe. O mandato popular é um deles. Por isso, ao avaliar eventual alteração do calendário eleitoral, o grupo de trabalho formado no Congresso deve ter presente, desde o início, que o mandato dos atuais prefeitos e vereadores acaba em 31 de dezembro de 2020. Nenhum dia a mais. E, por isso, o pleito municipal precisa necessaria­mente ocorrer neste ano.

Adiar as eleições deste ano para 2021 significa indevida e ilegítima ampliação de mandato

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil