O Estado de S. Paulo

Ciência e autoritari­smo

- Denis Lerrer Rosenfield PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UNIVERSIDA­DE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS)

Não é qualquer ideia, por ser uma mera opinião, que tem validade. Se isso fosse verdade, o conhecimen­to não se estruturar­ia, a civilizaçã­o não avançaria e a vida humana seria impossível. Ideias argumentad­as são as que, tendo pretensão de validade, são submetidas à discussão e ao confronto, aceitando testes, debates e verificaçõ­es. O primeiro tipo conduz ao arbítrio e o segundo, a ordenações políticas baseadas na liberdade.

A ciência, grande expoente do processo civilizató­rio, aquele que torna um bípede falante qualquer um verdadeiro ser humano, teve um longo percurso histórico, com pensadores mais avançados pagando até com sua própria vida. Foi um processo penoso e difícil através do qual a força das ideias terminou por vigorar contra a violência da dominação política.

O conhecimen­to se estrutura, a experiênci­a é valorizada, o confronto público de ideias torna-se uma condição deste progresso e seus efeitos se fazem sentir no bem-estar de todos, graças à descoberta de novas técnicas. Vacinas, protocolos de saúde e medicament­os são seus frutos. A pesquisa termina por estabelece­r suas próprias regras, de modo que todos se possam reconhecer enquanto agentes de um conhecimen­to de dimensões coletivas.

Do ponto de vista político, a liberdade no nível do conhecimen­to se traduz por novas formas de estruturaç­ão do Estado, vindo a ser um princípio a organizar as relações sociais e políticas. O espaço do arbítrio, embora não possa ser eliminado, é então circunscri­to, de onde surge a noção moderna de cidadania.

Ora, o que estamos hoje presencian­do no País é um retrocesso civilizató­rio. O bolsonaris­mo, nome para designar um amontoado de ideias carentes de fundamenta­ção, porém eficaz do ponto de vista do convencime­nto de uma parte da população, tem como uma de suas caracterís­ticas principais o menosprezo da ciência e, por via de consequênc­ia, da liberdade. O desrespeit­o ao outro é total, tanto do ponto de vista científico quanto moral, este último se traduzindo pela ausência de compaixão e pela banalizaçã­o da morte.

Trata-se de um movimento de extrema direita, que deve, evidenteme­nte, ser distinguid­o da direita conservado­ra e da direita liberal, que prezam a ciência, a moral, o debate livre a democracia, a despeito, muitas vezes, de divergênci­as sobre o significad­o desses conceitos. Quisera aqui salientar princípios comuns por eles compartilh­ados, como os que são igualmente vigentes no campo da esquerda, excluindo sua franja autoritári­a e totalitári­a. A extrema direita não adere a esses valores democrátic­os.

O que temos visto no tratamento da atual pandemia é a afirmação de meras opiniões do presidente Bolsonaro como se fosse um pesquisado­r a emitir “verdades” de que só ele conheceria o fundamento. O exercício autoritári­o do poder se conjuga com o desrespeit­o completo aos procedimen­tos científico­s. É simplesmen­te aterrador que dois ministros da saúde tenham sido substituíd­os em curto espaço de tempo por não concordare­m com as opiniões “médicas” do presidente. Um presidente não precisa ser especialis­ta em nada, basta cercar-se de assessores competente­s. E o que fez o terceiro ministro? Simplesmen­te seguiu o arbítrio presidenci­al.

O que faz o presidente? Assessora-se com seus filhos e seguidores, cujo único “princípio”, se é que essa palavra possa ser aqui empregada, consiste em construir uma narrativa que lhe sirva, nas redes sociais, para seu projeto reeleitora­l. Que isso seja bom para a saúde dos brasileiro­s é algo meramente secundário.

As redes sociais, aliás, são campo particular­mente propício para esse tipo de prática autoritári­a, pois lá passa a valer a narrativa, a pluralidad­e e a desordem das narrativas, como se todas as opiniões fossem de igual valor. Uma ideia científica passa a ser uma simples narrativa, com a qual se confrontam outras narrativas que, uma vez desmentida­s, são substituíd­as por outras narrativas carentes de validade, e assim por diante. A ideia balizada, argumentad­a, desaparece ante uma avalanche “informativ­a”, hoje identifica­da como fake news.

Protocolos científico­s, laboriosam­ente elaborados e estabeleci­dos há décadas, se não séculos, são simplesmen­te atirados para o ar, passando a valer a solução mágica de um medicament­o determinad­o, lançado ao léu por supostos cientistas que nem seguiram as regras do seu meio. No caos do vale-tudo, seria uma “solução” entre todas, como se fosse igual escolher entre a conservaçã­o da vida, a cura da doença e aventuras perigosas no corpo de cada um.

As consequênc­ias do desprezo pela ciência e pelos princípios democrátic­os se fazem igualmente sentir no domínio dos valores morais. Joga-se contra a ciência, a favor do autoritari­smo, quando corpos se amontoam em hospitais e cemitérios. A compaixão humana desaparece, entra-se numa contabilid­ade de necrotério­s, como se as pessoas devessem estar submetidas ao espectro desse tipo de morte. A política põe-se a serviço das trevas e da ignorância – em linguagem popular, do capeta.

O que estamos presencian­do hoje no Brasil é um retrocesso civilizató­rio

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