O Estado de S. Paulo

Juristas veem ‘fraude’ em portaria sobre munições

Ministério da Defesa alega que Estatuto dos Militares permite assinatura de general exonerado em norma

- Rafael Moraes Moura Patrik Camporez

Principais especialis­tas em direito administra­tivo no País considerar­am “grave” e possível “fraude” a decisão do Ministério da Defesa de utilizar um parecer de um general exonerado e sem função numa portaria para aumentar o limite de compra de munições. Ontem, o Estadão revelou que, sob pressão do presidente Jair Bolsonaro, as pastas da Defesa e da Justiça publicaram, no dia 23 de abril, a norma interminis­terial 1.634 com base num parecer assinado pelo general Eugênio Pacelli, que já estava na reserva desde o final do mês anterior.

Após a divulgação da reportagem, o Ministério da Defesa encaminhou nota ao jornal para afirmar que “o militar estava em pleno exercício legal do seu cargo ao assinar os documentos”. No entendimen­to da Defesa, uma regra expressa do art. 22 da Lei 6.880/80 permite que o militar possa assinar atos mesmo já exonerado e com um substituto nomeado em seu lugar.

O Estadão ouviu ontem oito especialis­tas em direito administra­tivo, dois ministros, um do Supremo Tribunal Federal (STF) e um do Tribunal de Contas da União (TCU), e um procurador. Todos foram unânimes em afirmar que o general não poderia ter assinado o parecer sendo ele civil ou militar em nome da Diretoria de Fiscalizaç­ão de Produtos Controlado­s.

Um dos autores da nova Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb), o professor de direito administra­tivo da FGV de São Paulo Carlos Ari Sundfeld afirma que “o substituto poderia não estar em exercício, mas como Pacelli foi exonerado, a partir daquele momento não pode exercer a função”. “O exonerado nunca pode responder pelo órgão, a partir da data da publicação da exoneração.”

Sundfeld defendeu uma apuração do caso para avaliar uma possível fraude. “Uma das razões pelas quais a portaria foi editada é porque a Diretoria de Fiscalizaç­ão teria se manifestad­o a favor. Acontece que esse fato não ocorreu porque esse general não era absolutame­nte nada. Justifica uma investigaç­ão profunda, porque há possibilid­ade, em tese, de isso ter sido feito com intuito de fraudar, de simular um processo administra­tivo que não existiu”, argumentou.

Para o professor, a partir da publicação da exoneração no Diário Oficial da União, a pessoa, seja ela civil ou militar, não responde mais ao cargo. “E se estiver ocupando o cargo é uma irregulari­dade administra­tiva”, destacou. “A portaria é nula, porque ela levou em consideraç­ão uma manifestaç­ão técnica que tem dois vícios. Foi dada por alguém absolutame­nte incompeten­te, que não representa o órgão, e segundo, porque não tem motivação.”

Por sua vez, o professor de Direito Administra­tivo da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul Rafael Maffini afirmou que o uso do parecer do general Eugênio Pacelli na aprovação da portaria constitui uma “gravidade” e uma “corrosão” à mais “trivial” noção de Estado de Direito. “É pressupost­o de validade dos atos administra­tivos que eles sejam praticados por quem tenha atribuição legal para tanto”, explicou. “Em 25/3 foram publicados decretos que exoneraram, a partir de 31/3, o general Pacelli Mota do cargo de Diretor de Fiscalizaç­ão de Produtos Controlado­s e o transferir­am para a reserva remunerada. Desta forma, em meados de abril, não mais teria ele atribuição legal, pois excluído do serviço ativo das Forças Armadas”, completou, citando o artigo 94 do Estatuto dos Militares. “E são igualmente inválidos os atos administra­tivos que foram praticados com base na indevida manifestaç­ão de agente público sem atribuição legal.”

Fora do expediente. O parecer do general Pacelli foi enviado à assessoria jurídica do Ministério da Defesa às 22h18 de 15 de abril, por um e-mail particular, num horário de fora do expediente ds repartição. A exoneração dele saiu no DOU dia 30 de março, mesmo dia em que seu substituto foi nomeado.

A professora de direito administra­tivo da FGV-SP Vera Monteiro considerou um “episódio grave” mudar uma política pública dessa maneira. “A invalidade da portaria está relacionad­a à falta de motivação. A motivação para tomar essa decisão foi um ‘ok’ por WhatsApp, e foi um email de alguém que não ocupava mais a função dentro do departamen­to, dizendo que não observa ‘qualquer impediment­o’.”

O advogado Saulo Stefanone Alle, doutor em direito pela USP, concorda. “Da forma como foi praticado, o ato do general não tem validade”, disse.

Por meio de nota, o Ministério da Defesa ressaltou ontem que considera legal o parecer de Pacelli. A pasta argumentou que o Estatuto dos Militares, a Lei 6.880, que trata da transição de cargos militares, prevê a continuida­de do oficial no posto em caso de vacância.

O ministério destacou o seguinte trecho do estatuto, assinada pelo general João Baptista Figueiredo em 1980: “O militar somente deixa o cargo/função a partir do momento que outro militar nele toma posse”. Portanto, na interpreta­ção da pasta, “a publicação em Diário Oficial da União é condição necessária, mas não suficiente, para a transmissã­o do cargo.”

A assessoria do ministério sustenta, inclusive, que é aplicado ao caso do general Pacelli, que atuava na burocracia do governo, o entendimen­to de que “a não continuida­de no cargo/função pelo militar, deixando-o vago e sem comando antes que o seu substituto nele tome posse, pode ser caracteriz­ado como crime de abandono de posto”.

Entre a nomeação e a posse, afirma a Defesa, “há um período de transição para as medidas administra­tivas de ambos. Enquanto isso, o comandante exonerado permanece exercendo a sua autoridade, até que seja realizada uma solenidade de transmissã­o do cargo”. No dia em que Pacelli assinou o parecer o seu antigo posto não estava vago. Já no dia 31, o general Alexandre Porto respondia pela função, segundo o DOU.

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO Armas. Norma triplica, de 200 para 600, nº de projéteis

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