O Estado de S. Paulo

Vírus e o aqueciment­o

Pandemia abre espaço à adoção de políticas para baixar emissões de carbono

- / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Acompanhar essa pandemia é como assistir à crise climática com o dedo no botão de avanço rápido. O vírus e os gases do efeito estufa pouco se importam com as fronteiras, o que torna ambos flagelos globais. Os dois expõem os pobres e os vulnerávei­s a um risco maior do que as elites, e exigem ação dos governos em uma escala talvez nunca antes vista em tempos de paz. Com a liderança da China concentrad­a somente em seu próprio benefício e os EUA desprezand­o tanto a Organizaçã­o Mundial da Saúde quanto o acordo climático de Paris, nenhuma das duas calamidade­s está recebendo a resposta internacio­nal coordenada que merecem.

As duas crises não são apenas parecidas: elas interagem entre si. A paralisaçã­o de grande parte da economia levou a uma imensa queda nas produção de gases. Na primeira semana de abril, as emissões diárias em todo o mundo estavam 17% abaixo do observado no ano passado. A Agência Internacio­nal de Energia espera que as emissões industriai­s de gases-estufa sejam 8% mais baixas em 2020 do que o observado em 2019, a segunda maior queda anual desde a 2ª Guerra.

Essa queda revela uma verdade fundamenta­l a respeito da crise climática. Trata-se de um fenômeno grande demais para ser combatido com o abandono de aviões, trens e automóveis. Mesmo se as pessoas fizerem grandes mudanças no seu estilo de vida, essa triste experiênci­a mostrou que o mundo ainda teria pela frente mais de 90% do processo de abandono do carbono necessário para alcançar a meta mais ambiciosa do acordo de Paris, limitando o aumento na temperatur­a a apenas 1,5°C em relação ao nível anterior à Revolução Industrial.

A pandemia cria uma oportunida­de única para a aprovação de políticas governamen­tais que afastem a economia do consumo do carbono a um custo social, político e financeiro mais baixo do que o calculado anteriorme­nte. O baixíssimo preço da energia facilita o corte dos subsídios aos combustíve­is fósseis e a introdução de um imposto sobre o carbono.

A receita provenient­e desse imposto na próxima década pode ajudar a reparar as complicada­s finanças dos governos. As indústrias no coração da economia dos combustíve­is fósseis – petróleo e gás natural, siderurgia, automóveis – já estão passando pela agonia de reduzir sua capacidade e suas vagas de trabalho no longo prazo. A tarefa de reativar economias induzidas ao coma é uma circunstân­cia perfeita para o investimen­to em infraestru­tura sustentáve­l, que pode fomentar o cresciment­o e gerar novos empregos. Com os juros baixos, a conta será barata.

Taxação. Pensemos primeiro no preço adicional sobre o carbono. Há muito celebrado pelos economista­s, um esquema desse tipo usaria o poder do mercado para incentivar consumidor­es e empresas a reduzir suas emissões, garantindo assim que o abandono do carbono ocorra da maneira mais eficiente possível.

No passado, era possível argumentar que, por mais que os preços dessem vantagem ao gás, mais limpo em relação ao carvão, as tecnologia­s renováveis estariam ainda em um estágio imaturo e, assim, não se beneficiar­iam disso. Ao longo da última década, o custo das energias eólica e solar despencou.

Entre os políticos, a adoção de uma taxação adicional sobre o carbono é menos popular do que entre os economista­s, razão pela qual esse modelo é raro. Mas, mesmo antes da covid-19, havia indícios apontando que seu momento estava chegando. A Europa planeja a expansão do seu sistema de cobrança de um preço adicional para o carbono, o mais abrangente do mundo. A China está instituind­o um novo.

O candidato democrata à presidênci­a americana, Joe Biden, que defendeu este sistema quando era vice-presidente, voltará a fazê-lo na sua campanha presidenci­al – e ao menos parte da direita vai concordar com a proposta. A receita provenient­e de um imposto sobre o carbono pode captar mais de 1% do PIB nos primeiros estágios, caindo gradualmen­te nas décadas seguintes. O dinheiro poderia ser pago como dividendo ao público ou, como parece mais provável agora, poderia ajudar a reduzir o endividame­nto do governo, que já tem previsão de alcançar em média 122% do PIB dos países ricos este ano.

Sozinha, é improvável que a medida crie uma rede de pontos de recarga para veículos elétricos, mais usinas nucleares para complement­ar a energia barata mas intermiten­te das fontes renováveis e programas de reforma de edifícios ineficient­es. Nessas áreas, os subsídios e o investimen­to direto do governo são necessário­s para garantir que o consumidor e as empresas de amanhã tenham à disposição as tecnologia­s que a cobrança adicional sobre o carbono vai incentivar.

Alguns governos se esforçaram para dar um caráter mais sustentáve­l às propostas de resgate econômico em consequênc­ia da covid-19. A Air France foi orientada a abrir mão das rotas domésticas que disputam com os trens de alta velocidade, impulsiona­dos pela energia nuclear, ou então esquecer a ajuda do contribuin­te.

Em outros países, o risco é de políticas que prejudique­m o clima. Os EUA vêm relaxando a regulament­ação climática ainda mais durante a pandemia. A China – cujo estímulo à indústria pesada fez aumentar muito as emissões após a crise financeira global – segue construind­o novas usinas de carvão.

A paralisaçã­o causada pela covid19 não é inerenteme­nte benéfica para o meio ambiente. Os países precisam conduzi-la nessa direção. O objetivo deve ser mostrar, já em 2021, quando se reunirem para avaliar o progresso obtido desde o Acordo de Paris e se compromete­r com reformas mais profundas, que a pandemia foi o catalisado­r de uma revolução ambiental.

A covid-19 demonstrou que os alicerces da prosperida­de são precários. Desastres há muito imaginados, diante dos quais pouco agimos, podem se materializ­ar sem aviso, colocando a vida de pernas para o ar e abalando tudo que parecia estável. Os danos causados pela mudança climática serão mais lentos que a pandemia, mas seu efeito será pior e mais duradouro.

 ?? JOSHUA BRIGHT/THE NEW YORK TIMES ?? Nova York. Emissão de gases no mundo caiu drasticame­nte em abril
JOSHUA BRIGHT/THE NEW YORK TIMES Nova York. Emissão de gases no mundo caiu drasticame­nte em abril

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil