O Estado de S. Paulo

Em Pernambuco, a corrida incessante para liberar leitos

- Felipe Resk / RECIFE

No meio da madrugada, a massagista Flávia Ferreira, 47 anos, acordou aos sustos com a gritaria na casa da frente. “Meu pai vai morrer! Meu pai vai morrer!”, desesperou-se uma vizinha diante da imagem do pai, um senhor de 70 anos, que convulsion­ava sobre a cama, após três dias de dor de cabeça, dor no corpo e falta de ar. Por se tratar de caso suspeito de covid-19, Flávia conteve a vontade de ir até lá. Da janela, conformou-se em acalmar a amiga.

Como a rua fica perto de um hospital, normalment­e a ambulância aparece em minutos. Mas daquela vez o socorro demorou mais de uma hora para chegar à Campina do Barreto, bairro na periferia do Recife, para angústia dos moradores que não sabiam como ajudar.

Segundo Flávia, houve um momento que um taxista até assumiu o risco e se prontifico­u em levá-lo à unidade médica, mas já não dava mais tempo. Eram 3h16 quando, sem assistênci­a, ele parou de respirar.

“Os paramédico­s chegaram, todos com aquelas roupas de proteção, pareciam homens da Lua. Constatara­m o óbito, entregaram um papel e foram embora”, relata a massagista. O corpo só foi removido ao amanhecer, pela funerária. “Foi uma cena triste. Depois disso, passei três dias com todas as janelas e portas fechadas com medo de o vírus entrar em casa.”

O episódio aconteceu na sexta-feira, dia 15, e é um dos reflexos da iminência de colapso do sistema de saúde em Pernambuco, onde os diagnóstic­os de covid-19, só de abril para cá, saltaram de 95 para 27.759 casos – 46% destes, de paciente graves.

Com hospitais lotados e até fila por leito de UTI, o Estado também ultrapasso­u a marca de 2 mil mortes, sem indicativo de desacelera­ção da curva.

De acordo com a gestão Paulo Câmara (PSB), 97% dos 600 leitos de UTI para Síndrome Respiratór­ia Aguda Grave (SRAG) estão ocupados. Familiares de pessoas infectadas, no entanto, relatam esperar até mais de uma semana para conseguir internação. Na outra ponta, médicos e enfermeiro­s descrevem uma rotina de unidades sobrecarre­gadas, com equipes exaustas pelo trabalho e por ter de comunicar cada vez mais, por telefone, todas as mortes.

Unidades de Pronto Atendiment­o (UPAs), destinadas a casos menos complexos, já precisam lidar com pessoas em estágio avançado de insuficiên­cia respiratór­ia. Sem tantos ventilador­es mecânicos à disposição, socorrista­s se revezam para, na mão, manter o doente respirando. “O profission­al fica bombeando manualment­e com uma bolsa, para evitar que o paciente morra. Passa 30 minutos bombeando, depois troca para outro profission­al e assim por diante”, conta um médico.

Embora seja dinâmica, não é raro que a fila por vaga em UTI supere 200 pessoas em Pernambuco e o próprio governo admite que precisa selecionar qual paciente deve ser transferid­o primeiro. “A priorizaçã­o é realizada a partir da discussão técnica entre o médico solicitant­e e o médico regulador, levando em consideraç­ão, primeirame­nte, a gravidade do caso, a estrutura disponível e a qualidade do suporte clínico nas unidades de saúde onde cada paciente se encontra”, informa em nota.

Referência no tratamento da covid-19 no Recife, o Hospital Oswaldo Cruz opera em 100% da capacidade da UTI pelo menos desde o início de abril. “Quando abre uma vaga, a demora é só para fazer a limpeza do leito e o transporte do paciente. Entre a gente, o jargão é que não se espera nem esfriar o colchão”, diz o infectolog­ista João Paulo França, contratado para atuar na pandemia.

Mesmo em hospitais de referência, há relatos de momentos em que falta medicação. No comunicado, o governo de Pernambuco diz que todas emergência­s públicas têm capacidade de atender os casos mais graves. Também informa ter reforçado unidades de atenção primária, como as UPAs, com equipament­os e profission­ais.

“Neste sentido, os pacientes que estão aguardando a transferên­cia para centros de referência do coronavíru­s são assistidos em unidades de saúde que geralmente contam com estrutura de salas de estabiliza­ção, inclusive com pontos de oxigênio e respirador­es”, afirma. “A Secretaria de Saúde de Pernambuco reconhece a gravidade do momento em todo o País e ressalta que vem tomando medidas para aumentar a estrutura da rede estadual.”

Responsáve­l pela maioria dos casos notificado­s, a região metropolit­ana do Recife é o epicentro da doença em Pernambuco. Para tentar conter o avanço, o governo decretou bloqueio na capital e em quatro cidades, o chamado lockdown.

Com alto índice de transmissã­o comunitári­a no Recife, o coronavíru­s pegou até o alto escalão da administra­ção pública. Só na última semana, foram diagnostic­ados com covid-19 o governador Paulo Câmara, a vice Luciana Santos, o chefe de gabinete Milton Coelho e o secretário da Saúde André Longo.

Na capital, a prefeitura abriu sete hospitais de campanha e anunciou a construção de 313 leitos de UTI desde o início da crise, mas só 114 (ou 36,4% do total), de fato, funcionam. Nos demais, faltam médicos. “Jamais imaginei passar por isso. A doença se espalhou muito rápido e mudou a vida de todo mundo. A cada dia, a letalidade se aproxima mais da gente”, descreve o advogado Lucas Mendes, 28 anos, que perdeu um amigo, de 36 anos e sem comorbidad­es, para o coronavíru­s. Segundo conta, quatro familiares também contraíram a doença.

Hoje, a preocupaçã­o maior de Mendes é com a avó – idosa de 86 anos, com problemas de artrose e portadora de Alzheimer – que vive no mesmo espaço dos outros parentes que foram infectados. Com sinais de interioriz­ação da doença, a gestão Câmara anunciou construção de hospitais de campanha em municípios de referência como Caruaru, no agreste, e Petrolina, no sertão. Ao menos 153 das 185 cidades do Estado já notificara­m casos da doença.

“A doença se espalhou rápido e mudou a nossa vida. A cada dia a letalidade se aproxima da gente.” Lucas Mendes ADVOGADO

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MARLON COSTA/FUTURA PRESS – 21/05/2020 Lockdown. Era para Recife e mais outras quatro cidades não ter ninguém nas ruas

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