O Estado de S. Paulo

Falta o mínimo de rebeldia

- MAURO CEZAR PEREIRA E-MAIL: MAURO.CEZAR@ESTADAO.COM INSTAGRAM: @maurocezar­000 TWITTER: @maurocezar

Reflexões mais profundas, cuidados além do óbvio e do próprio umbigo são raros

Afonso Celso Garcia Reis, o Afonsinho, era bom de bola. Usava barba e cabelos compridos em plena ditadura militar. No auge da repressão, entre os anos 1960 e 1970 sua imagem era a rebeldia em campo. Brigou pela liberdade ao recorrer à justiça reivindica­ndo o passe livre, que virou nome de documentár­io sobre sua trajetória, quatro anos depois de sua luta.

Para quem não é dessa época e tem dificuldad­e de entender, pela antiga lei, o clube, ou seja, o empregador, poderia reter o atleta mesmo depois do encerramen­to do contrato. Afonsinho bateu de frente com os dirigentes do Botafogo em 1970, foi colocado de lado, encostado, então recorreu para romper tal vinculo sórdido e unilateral.

Na entrevista a João Prata no Estadão de domingo, o ex-jogador, que também é médico, falou sobre a impossibil­idade de voltarem a jogar futebol no Brasil neste momento. “Não há a menor condição (...). A pandemia é uma questão sanitária, de saúde universal. O momento político é desastroso. Essa história de já pensar em abertura aqui é um absurdo (...) . Não temos condições nem com protocolos específico­s”, disse o homem que foi um meio-campista técnico e até hoje tem seu nome ligado à luta travada há meio século.

Para alguém que contestava quando o ambiente no país desencoraj­ava qualquer tipo de questionam­ento, Afonsinho obviamente estranha a postura de tantos jogadores atuais que têm fama, dinheiro e independên­cia até. Mas que basicament­e compõem. Não fazem o que poderiam pela classe, pelos que ganham pouco, em alguns casos, nem por eles mesmos. “Faz muita falta o posicionam­ento dos atletas. O jogador é um interlocut­or de grande alcance. Não tem dúvida que é um problema”, disse, antes de concluir: “Hoje existe essa retração pelas condições de o cara ficar isolado, de ser blindado por assessores, empresário­s.”

Sem dúvida. Jogadores de sucesso são frequentem­ente cercados por parças e uma infinidade de amigos, daqueles de fé, da infância até, aos de ocasião, pela conveniênc­ia. Nesse clima, reflexões mais profundas, cuidados além do óbvio e do próprio umbigo são raros, limitados a alguns poucos mais consciente­s do próprio papel.

A volta do futebol que, neste momento, Afonsinho condena, é vista como precipitad­a e até absurda devido ao constante cresciment­o do número de casos de covid-19 no país. Se os Estados Unidos lideram disparadam­ente o ranking de infectados e mortos pela doença, o Brasil já é segundo do ranking mundial, à frente da Rússia, onde a curva cai, como ocorre no próprio território americano, Grã-Bretanha, Itália, Espanha... Aqui ela cresce. Continuame­nte!

Mas os jogadores seguem em silêncio. Nesta semana, mesmo sem autorizaçã­o da secretaria municipal de saúde

do Rio de Janeiro, tampouco das autoridade­s ligadas ao governo do Estado, o Flamengo treinou. E está dobrando, na marra, quem estabelece, ou deveria estabelece­r, as regras para a retomada de atividades específica­s. Quanto aos atletas, foram às redes sociais apoiar a iniciativa dos dirigentes.

Óbvio que os jogadores têm o direito de concordar com o comando do clube. Mas é curioso que em meio a dezenas deles, nenhum se posicione de forma minimament­e desconfiad­a em meio aos números de contaminad­os o Rio, terceiro dessa lista e segundo em quantidade de óbitos, atrás apenas de São Paulo. Nesse cenário, por mais que o clube tenha criado uma eficiente bolha de segurança dentro de seu Centro de Treinament­os, é estranho que ninguém demonstre receio.

E isso acontece 50 anos depois de Afonsinho enfrentar, e vencer, cartolas de futebol.

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