O Estado de S. Paulo

Pandemia faz transplant­e de órgãos cair 34%

Foram 410 cirurgias de rins, fígado, coração e pâncreas em abril, ante 617 no mesmo período de 2019; medo de ser infectado explica queda

- Ricardo Galhardo

Em abril de 2020, o número de transplant­es de rins, fígado, coração e pâncreas caiu para 410, ante 617 em abril do ano passado. A Associação Brasileira de Transplant­es de Órgãos relaciona a queda a fatores como medo de contaminaç­ão e falta de leitos em UTIs.

O número de transplant­es de rins, fígado, coração e pâncreas registrado em abril de 2020 é 34% menor do que no mesmo período do ano passado. Foram 410 transplant­es realizados em abril deste ano ante 617 em 2019. Os números são da Associação Brasileira de Transplant­es de Órgãos (ABTO) que relaciona a queda à pandemia do novo coronavíru­s. “Com certeza a mortalidad­e na fila (de espera por transplant­es) também já aumentou”, disse o presidente da ABTO, Hoygens Garcia.

Segundo ele, colaboram para a diminuição dos transplant­es o medo de pacientes e doadores de se contaminar­em no deslocamen­to até os hospitais, a falta de leitos específico­s em UTIs – já que a maior parte está reservada para pacientes com a covid19 – e dificuldad­e de acesso às famílias de possíveis doadores.

Além disso, também são fatores para a redução dos transporte­s a suspensão de voos comerciais para transporta­r órgãos e até a redução do número de mortes por trauma encefálico por causa da queda do número de acidentes registrada durante a quarentena.

Cirurgias envolvendo córneas e medula óssea foram praticamen­te paralisada­s, com exceção dos casos de urgência. Em Estados com menos casos registrado­s de coronavíru­s como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná, o impacto foi menor. Mas nas regiões Norte e Nordeste, onde além da alta incidência da covid-19 a estrutura para transplant­es é mais precária, a redução passa dos 50%.

No Ceará e Pernambuco, por exemplo, os transplant­es de rins foram suspensos. O resultado é que órgãos que poderiam ser usados em pacientes da própria região que aguardam há meses

na fila do Sistema Nacional de Transplant­e, acabam sendo levados para outros lugares.

Na quinta-feira, um jovem de 14 anos teve morte cerebral depois de sofrer um acidente de moto na região do Cariri, interior do Ceará. A família autorizou a doação dos órgãos. O fígado foi transplant­ado para um paciente de Fortaleza, mas os rins do rapaz tiveram de ser trazidos até São Paulo para não serem desperdiça­dos. Os transplant­es de rins na capital do Ceará, uma das cidades de referência no Nordeste, foram totalmente suspensos durante a pandemia do coronavíru­s.

Um dos maiores temores em relação aos transplant­es é a possibilid­ade de que o doador esteja contaminad­o. Por isso, há algumas semanas, as secretaria­s estaduais de saúde adotaram o critério de priorizar os testes de PCR, mais precisos, em possíveis doadores de órgãos. “Isso começou em São Paulo. No comecinho não tinha teste. Hoje melhorou muito”, disse o médico Paulo M. Pêgo Fernandes, membro do conselho deliberati­vo da ABTO.

Temor. Segundo médicos especializ­ados em transplant­es, o principal motivo é o medo dos pacientes receptores de se contaminar nos hospitais.

É o caso do advogado Carlos Alberto Melo Pereira, de 69 anos, que mora em Natal e está em quarto lugar na fila para receber um transplant­e de fígado. Ele aguarda o órgão há um ano e prefere ficar em casa, em segurança, do que se arriscar uma viagem até Fortaleza, onde deve realizar o transplant­e.

“É um conflito interno total porque antes eu estava longe e agora que estou tão perto me sinto ainda mais longe”, disse. “Tenho condições de ir até Fortaleza, mas para que vou sair da segurança da minha casa? Tenho muito medo. No caminho (de 10 horas) vou ter de parar para abastecer, me comunicar com as pessoas na estrada. E se a minha mulher pega (a covid19)? Aí ela não vai poder cuidar de mim e eu não vou poder cuidar dela”, lamentou.

De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Transplant­es de Órgãos, a redução do número de transplant­es por medo da covid-19 está provocando até mesmo um aumento da demanda por hemodiális­e. “Aí a pessoa corre mais risco ainda porque em alguns casos é preciso fazer quatro ou cinco sessões por semana”, explicou Garcia.

Online. No Hospital Albert Einstein, onde é realizada grande parte dos transplant­es pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na capital paulista, uma alternativ­a para atender os pacientes tem sido intensific­ar o uso da telemedici­na.

“Este é um legado que a covid nos trouxe. Em termos de resultados vai trazer bons frutos. Depois que a pandemia passar podemos continuar aplicando a telemedici­na em várias situações com muitos impactos positivos, até a redução dos custos”, disse o pneumologi­sta José Eduardo Afonso Júnior, coordenado­r médico do programa de transplant­es do Einstein.

Segundo ele, por meio de chamadas de vídeo e aplicativo­s para celulares é possível hoje medir funções como oxigenação, pressão e frequência cardíaca, entre outras, evitando que os pacientes tenham de se deslocar até o hospital ou ao consultóri­o médico. O expediente tem sido usado para atender até pessoas que moram em outros países, diz o médico.

Segundo ele, dos mais de 3 mil transplant­es realizados pelo Hospital Albert Einstein desde o início da pandemia, 14 pacientes foram contaminad­os pelo coronavíru­s.

Inseguranç­a “Antes eu estava longe e agora que estou tão perto me sinto ainda mais longe. Tenho condições de ir até Fortaleza, mas para que vou sair da segurança da minha casa? Tenho muito medo.” Carlos Alberto Melo Pereira MORADOR DE NATAL, TEM DE VIAJAR A FORTALEZA PARA SER TRANSPLANT­ADO

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TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO - 28/4/2020 Entraves. Há o temor de que os doadores de órgãos tenham sido contaminad­os pelo coronavíru­s; testagem foi ampliada

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