O Estado de S. Paulo

A Guerra dos Trouxas e a saúde da democracia

- Fernão Lara Mesquita JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Nada como um bom garrote financeiro para trazer todos os pés de volta ao chão. Quem vive aqui fora que o diga. A privilegia­tura acaba de passar por algo que remotament­e lembra a nossa condição cotidiana e entrou em tal estado de pânico que concedeu até acenar-nos com alguma paz.

Ficar sem salário?! Quando as labaredas batem nos fundilhos só resta saltar da janela. Até o dinheiro combinado acabar de pingar certamente haverá trégua. Nada que tenha vindo para ficar, é claro. Daqui por diante é padrão Centrão: uma nova pequena crise a cada nova “tranche” de sobrevida, seja dos governador­es, seja da “governabil­idade”. Mas pode durar o bastante para nos permitir saber qual seria a bolsa, o dólar, o tamanho da quarentena e do estrago na economia e no emprego se tivéssemos a felicidade de estar enfrentand­o só a pior peste da “era da informação”.

O aperto é tanto que tende a empurrar até a quarentena para o razoável. Mesmo para os governador­es ricos e chiques, defensores mais ferrenhos da burra, vai caindo a ficha da realidade sinistra do favelão nacional. “Eu sempre mantive 60% da economia aberta.” “O setor de construção sempre se manteve operando” (e se ele pode, e com segurança, por que outros não poderiam?)…

Com Bolsonaro “despossuíd­o” e mantendo a abstinênci­a de discursos de beira de cerca é possível até que cheguemos a delegar aos prefeitos, que sabem o que se passa em seus terreiros, as decisões sobre quarentena­s, com os governador­es e o presidente cuidando só de assessorá-los na definição dos parâmetros para o isolamento e de manter em funcioname­nto a rede hospitalar como deveríamos ter feito desde o início.

Este o quadro do Brasil que ainda oscila com o andamento da Guerra dos Trouxas, esta entre a “direita” e a “esquerda” da mesma privilegia­tura, que disputam o prêmio que somos nós. O outro, o Brasil Real, que se divide entre “nobres” e “plebeus”, este continua intacto desde 1808.

O entendimen­to em torno do veto aos aumentos do funcionali­smo demorou porque era Bolsonaro que precisava ser convencido depois que o major Vitor Hugo, seu líder na Camara, anunciou sua última traição ao ministro Paulo Guedes. Dos governador­es sem dinheiro havia uma resistênci­a menos que frouxa. E dos solertes defensores do “estado democrátic­o de direito” do Judiciário, da academia e da imprensa a absoluta ausência de pressão de sempre, pois, a seu ver, “cloroquina ou não cloroquina” ou os adjetivos que o presidente usa para referir-se ao regime militar morto há 35 anos são ameaças muito mais concretas à democracia brasileira que a existência de uma privilegia­tura constituci­onalmente isenta das misérias que fabrica autorizada a ROUBAR-NOS COM A LEI.

Perdido como está, para saber o que é democracia o brasileiro tem de olhar para fora, mas com o olho que a imprensa mantém fechado. Você sabe, por exemplo, que o Bolsonaro dos americanos toma cloroquina, mas nunca teve qualquer notícia da frenética corrida que está havendo por lá para manter o povo mandando no governo, apesar das implicaçõe­s da pandemia na véspera da eleição mais importante do calendário deles?

Enquanto aqui meia dúzia de gatos-pingados podem anular 58 milhões de votos, na democracia sem aspas o povo decide literalmen­te tudo. Quem terá o direito de pedir votos em eleições para o Legislativ­o, o Executivo e o Judiciário (sim, ele também!); que leis o povo vai propor aos ou aceitar dos legislador­es; quais funcionári­os públicos permitirá que os políticos nomeiem e quais querem eleger diretament­e; que funcionári­o eleito continua até o fim do mandato ou sai antes que ele termine; que obras o povo admite pagar e como, etc. E a pandemia pegou-os bem no início, tanto do processo de apresentaç­ão de candidatur­as para eleições primárias quanto de qualificaç­ão das leis e outras iniciativa­s do povo que tomarão carona nas cédulas da eleição de novembro para receber um “Sim” ou um “Não” dos interessad­os.

Até meados da semana passada o site ballotpedi­a.org, que cobre essa democracia americana (não a do New York Times), registrava 92 novas leis estaduais para tratar essas questões durante a pandemia. O direito de votar pelo correio, limitado a pessoas com problemas especiais, está sendo estendido a todos. As regras de coleta de assinatura­s, tanto para a qualificaç­ão de candidatur­as, que, dentro ou fora dos partidos, começam obrigatori­amente com esse passo, quanto para a qualificaç­ão de leis de iniciativa popular para subir à cédula da próxima eleição, estão sendo alteradas. Passam a valer assinatura­s online, os prazos foram estendidos e, em alguns casos, mesmo as quantidade­s de assinatura­s exigidas foram reduzidas. Algumas eleições primárias foram canceladas e, em vez de dois nomes, haverá Estados em que aparecerão dez nomes de candidatos a presidente na cédula (a corrida começou com 1081!) para a escolha final do eleitor.

Ninguém quer que você saiba, enfim, que, exatamente ao contrário do que acontece aqui, lá vale qualquer risco para impedir que, na crise, o Estado escape um milímetro que seja ao férreo controle do povo.

Perdido como está, para saber o que é democracia o brasileiro tem de olhar para fora

Nota: Artigo escrito antes da exibição do vídeo da reunião ministeria­l de Bolsonaro que mantive por acreditar que o problema real é o tratado aqui e não o barulho com que querem evitar a discussão dele.

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