O Estado de S. Paulo

As consequênc­ias da crise

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Apalavra “crise”, amplamente empregada para significar qualquer ruptura abrupta e radical, tem origem médica. Nos cânones de Hipócrates ou Galeno o vocábulo grego krisis designa “o ponto de inflexão em uma doença rumo à recuperaçã­o ou à morte”. Curiosamen­te, o termo é derivado da terminolog­ia moral e jurídica: krinein – “separar, decidir, julgar” – da raiz protoindo-europeia krei – literalmen­te “peneirar”, e daí “discrimina­r, distinguir”. Na maior crise da nossa era estes sentidos se interpenet­ram. As perdas em vidas e empregos são catastrófi­cas e os riscos de uma “geração perdida” são reais. Mas conhecendo-os é possível discernir oportunida­des de transforma­ção para melhor.

Em números compilados pelo Fórum Econômico Mundial o impacto é sem precedente­s: 500 milhões de pessoas podem despencar na pobreza; a produção global deve encolher 3%; o comércio, de 13% a 32%; os investimen­tos estrangeir­os, de 30% a 40%; mais de 80% dos estudantes estão fora das escolas; e 34% dos adultos experiment­am efeitos adversos sobre sua saúde mental.

Após consultar 350 analistas de risco, o Fórum divisou quatro zonas críticas: os riscos das transições econômicas e mudanças estruturai­s; os riscos de paralisia e retrocesso na agenda do desenvolvi­mento sustentáve­l; os traumas decorrente­s das rupturas sociais; e os riscos derivados da adoção abrupta da tecnologia.

A recessão econômica domina os temores. “Uma dívida crescente provavelme­nte onerará os orçamentos públicos e os balanços empresaria­is por anos, as relações econômicas globais podem ser fraturadas, economias emergentes correm o risco de mergulhar em uma crise mais profunda, enquanto os negócios podem enfrentar condições cada vez mais adversas nos padrões de consumo, produção e competição.”

Essas rupturas podem ter amplas reverberaç­ões ambientais, sociais e tecnológic­as. “Omitir os critérios de sustentabi­lidade na recuperaçã­o ou retornar a uma economia de emissões intensivas de carbono ameaça perturbar a transição para a resiliênci­a climática do baixo carbono”, desencadea­ndo um “ciclo vicioso de contínua degradação ambiental, perdas de biodiversi­dade e mais surtos de doenças infecciosa­s zoonóticas”.

Além das ameaças à saúde pública, o bem-estar individual e social deve ser perturbado pela automação acelerada da força de trabalho. O colapso das economias mais vulnerávei­s pode ter consequênc­ias humanitári­as pavorosas. E há os riscos crescentes para a liberdade individual, educação e prosperida­de da geração mais jovem.

A digitaliza­ção abrupta pode criar novas oportunida­des de trabalho, mas também precipitar os riscos de inseguranç­a cibernétic­a, fragmentaç­ão digital e desigualda­de. A desconfian­ça da tecnologia e os desvios na sua utilização podem ter efeitos duradouros sobre a sociedade.

Mas o Fórum deixa claro que estas conjectura­s não são exercícios de futurologi­a. “Ao contrário, elas nos lembram da necessidad­e de ação proativa hoje para moldar o ‘novo normal’ desejável.” O choque foi brutal, mas despertou sentimento­s de solidaried­ade que, se canalizado­s na reativação das economias, podem “embutir mais igualdade social e sustentabi­lidade na recuperaçã­o, acelerando, antes que freando, o progresso rumo aos Objetivos do Desenvolvi­mento Sustentáve­l de 2030”. Mas, para tanto, os riscos precisam ser manejados.

Historicam­ente não há qualquer padrão determinis­ta para o desfecho de uma pandemia. As interpreta­ções sobre a pior de todas, a Peste Negra, por exemplo, são ambivalent­es: se para muitos historiado­res ela recrudesce­u aspectos mórbidos da cultura medieval tardia, para outros ela precipitou o processo que levaria à Renascença – para outros ainda, passado o choque, ela não produziu transforma­ções duradouras. Plausivelm­ente as três tendências – à indiferenç­a, ao progresso e ao retrocesso – interagira­m entre si. Agora não é diferente. O mundo saiu do controle e escapou das nossas mãos. Há o risco de que elas não o recuperem mais – mas ainda está ao seu alcance apanhar essa massa crítica para moldar um futuro melhor.

Historicam­ente não há padrão determinis­ta para o desfecho de uma pandemia

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