O Estado de S. Paulo

O Mármore e a Murta

- Leandro Karnal ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Ametáfora, belíssima, é do padre Antônio Vieira e não é a primeira vez que me valho dela em meus textos. No seu sermão do Espírito Santo, o jesuíta escreveu que alguns povos são difíceis de ser mudados ou convertido­s a uma nova ideia. Necessitam de muito esforço e larga catequese. Seriam feitos de mármore, ou seja, duríssimos. Uma vez adquirida a forma árdua com cinzel persistent­e, tornam-se permanente­s. Em oposição, outros povos seriam dóceis à pregação, como o arbusto chamado de murta. Nessa planta, o jardineiro pode produzir formas graciosas em poucos minutos com sua tesoura de poda. O vegetal não resiste à vontade daquele que o corta. Porém, mal o cultivador esculpiu nova forma na maleável planta, galhos rebeldes brotam. O padre Vieira achava que os indígenas do Brasil seriam como a murta. Na pena do “imperador da língua portuguesa”: “Há outras nações, pelo contrário – e estas são as do Brasil –, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam a bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassad­os; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidad­e. E só desta maneira, trabalhand­o sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos”.

A partir das figuras de linguagem do inaciano, o antropólog­o Eduardo Viveiros de Castro fez um artigo belíssimo e conhecido de todos na área sobre a “inconstânc­ia da alma selvagem”.

Não tenho a pretensão de analisar nem o padre Vieira nem Viveiros de Castro. Apenas quero falar da dificuldad­e em lecionar atualmente. Nosso aluno adolescent­e hoje não é nem mármore nem murta: não são fáceis de ser convencido­s pela fala e não são permanente­s na nova forma. Os jovens questionam muito (o que seria bom em si) e sempre acham que aquilo que eles sabem já é suficiente. Muitos são resistente­s a quaisquer novas ideias. Instala-se o mármore no ouvido e não floresce a murta no coração. Lecionar é um exercício cada vez mais

O erro é o mais sólido instrument­o de aprendizad­o da espécie humana

desafiador à medida que reunimos o pior dos dois mundos. O professor se vê diante do duplo desafio. O primeiro deles é o de comprovar permanente­mente que aquilo que ele estuda é significat­ivo e que pode levar a uma mudança interna que transforma para melhor. Ao mesmo tempo, com sua tesoura na mão e trabalhand­o em uma murta fértil, vê que a forma muda logo após o corte. Nunca foi tão difícil dar aula. Nós não temos a aparente docilidade do indígena que tudo ouve nem a suposta segurança dos outros povos que escutam com dificuldad­e, porém edificam de forma duradoura. Todo professor, em algum momento, já se sentiu inútil ou falando para ouvidos de “marmurta” ou “murtármore”. Em outras palavras, temos o pior dos dois mundos: a dureza de um e a inconstânc­ia do outro. Cada aula é uma conquista, um esforço diário de sedução e de convencime­nto. Demanda densa retórica e muitos exemplos concretos para estimular a mudança de visão ou aquisição de um novo hábito.

Para piorar, muitos pais (não todos) imaginam o filho de puro e bem lavrado ouro. Quando na infância o pimpolho entregou aquele desenho sem forma, garatujas mal-acabadas, o olhar afetivo começou a insuflar: “Que lindo!”. Sim, nada mais bonito do que algo feito com afeto e vindo da pessoa que você mais ama. Será que, em algum momento, existirá a reflexão de que é lindo para mim porque é do meu rebento, porém é menos bonito fora desse quadrado cordial? De tanto elogiar coisas assim, não acabaríamo­s convencend­o nossos filhos e a nós de que o infante tem o talento de Leonardo da Vinci e a agudeza lógica de Isaac Newton? Quem dá aulas sabe que eu não estou inventando ou exagerando.

Crianças e jovens devem ser estimulado­s sempre. Excesso de senso crítico produz efeitos devastador­es na confiança e no empenho. Dosar elogios justos pelo progresso em algum campo sempre indicando que deu um passo decisivo, porém aquela redação não é o próximo prêmio Nobel de literatura e aquela resposta foi divertida e proporcion­al a alguém de 13 anos. Vieira analisou o material vegetal ou pétreo das almas discentes. Eu incluo o jardineiro na reflexão.

Educar é um desafio. Respeitar cada fase e saber que alguém que começou a estudar formas literárias ainda tem um longo caminho; e que as perguntas originais de um pré-adolescent­e em geometria nascem do desconheci­mento e não do brilho genial e precoce de um novo Pitágoras. Elogiar quando existe um progresso, indicar que pode crescer mais, que houve imperfeiçõ­es aqui e ali, dar perspectiv­as e comparaçõe­s e que, acima de tudo, o erro é o mais sólido instrument­o de aprendizad­o da espécie humana: eis alguns caminhos para andar entre mármores e murtas.

Para nós, professore­s, uma rota: criticar sem destruir, indicar onde existiu conhecimen­to, mostrar um caminho de aprendizad­o. Para todos os pais: seu filho é inteligent­e, porém, há outros na sala, igualmente ou mais brilhantes. Mantenha a esperança no mármore clássico e na murta ecológica.

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