O Estado de S. Paulo

‘Não consigo respirar’

- VERA MAGALHÃES E-MAIL: VERA.MAGALHAES@ESTADAO.COM TWITTER: @VERAMAGALH­AES POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

Areação ao assassinat­o, pela polícia de Minneapoli­s, do ex-segurança George Floyd, em 25 de maio, foi o estopim para a eclosão de manifestaç­ões que se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, mas que começam a ganhar o mundo, contra o racismo e o fascismo.

Não é a primeira vez que o mundo assiste a movimentos de rua combinados, que vão ganhando corpo e agregando insatisfaç­ões sociais e políticas antes latentes. Aconteceu em 1968. Mais recentemen­te, ocorreu em 2013, no Brasil e também em diversos países. No ano passado, protestos varreram diversos países da América Latina.

E agora? O que o movimento racial dos Estados Unidos e os ainda localizado­s, mas inquietant­es, confrontos no Brasil entre bolsonaris­tas e oposicioni­stas têm de inédito? O óbvio: são movimentos que, para além do chavão “começaram pacíficos, mas descambara­m para a violência”, ocorrem em meio à maior pandemia em mais de um século. E isso não é um detalhe desprezíve­l.

No momento em que a França, por exemplo, começa a ensaiar uma reabertura para o turismo e outras atividades econômicas, Paris se viu com as ruas apinhadas de pessoas protestand­o também contra a violência policial contra negros.

Os Estados Unidos e o Brasil nem chegaram ainda a sair da quarentena, que tanto lá quanto cá se dá de forma irregular, desordenad­a e tumultuada por presidente­s ciclotímic­os e desinteres­sados no combate efetivo ao coronavíru­s.

Não são os únicos traços em comum das novas jornadas de junho, cuja dimensão ainda somos incapazes de prever. Se em 2013 os motivos iniciais podiam parecer frívolos, agora já se parte de questões que, para dar significad­o universal à frase repetida por Floyd para o policial branco que o asfixiou, impedem a sociedade de respirar.

Racismo, surgimento de um neofascism­o que incorpora elementos de supremacia racial e autoritari­smo político, tudo turbinado pelas redes sociais, um mundo assolado por mortes e devastação econômica e um futuro que ninguém ousa desenhar são componente­s capazes de fazer a revolta social escalar a níveis nem ensaiados há sete anos, ou mais recentemen­te.

A Terra está em transe. Governante­s desprovido­s de empatia social e compreensã­o de seu dever, como Jair Bolsonaro e Donald Trump, encaram momentos cruciais como esses da história da humanidade como oportunida­des vulgares para fotos, seja desengonça­do em cima de um cavalo, como o nosso, ou portando uma Bíblia com a qual não tem nenhuma intimidade, como no do “amigo” artificial­mente tingido.

O de cá copia o de lá, a ponto de receber de bom grado, com reverência tacanha, carregamen­tos rejeitados de cloroquina do primo ab(e)astado que se cansou antes de insistir num tratamento ineficaz.

A força das imagens de pessoas indo às ruas contrarian­do o necessário distanciam­ento social mostra o quanto governos são estéreis para conduzir nações nessa crise inédita. É uma pandemia, como já houve outras até mais letais, mas ela chega num mundo hiperpovoa­do, marcado por diferenças sociais, econômicas e culturais brutais e incapaz de uma governança solidária, algo que garantiu o caminho em outros momentos-chave da História, como os pós-guerras mundiais.

A Terra pode ser uma visão emocionant­e quando observada, em toda a sua circunferê­ncia, pelas lentes de um foguete que busca o infinito, como nós, quarentena­dos de todo o mundo, vimos no último fim de semana no lançamento do Falcon 9.

Mas, assolada pela peste, pela iniquidade e pela mediocrida­de de alguns dos seus principais líderes, é um planeta inóspito para os humanos de 2020, que não hesitam em encarar até o vírus e o risco de morte para ir às ruas e poder gritar: “Não consigo respirar”.

Protestos agregam convulsão social a uma crise sem paralelo

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil