O Estado de S. Paulo

A hora da retirada

- ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Há 80 anos, em junho de 1940, completou-se uma retirada que é tratada como épica pelo Ocidente: Dunquerque. Esse lugar (entre a França e a Bélgica) apresenta um templo católico em meio às areias, de onde deriva o nome: igreja das dunas (dun-kerke).

O maior conflito da história humana teve começo, na Europa, em setembro de 1939. Derrotada a Polônia, as divisões alemãs não pareciam dispostas a bombardear seus inimigos ocidentais. Os meses finais de 1939 e iniciais de 1940 foram de tenebroso silêncio dos canhões a Oeste. O período foi batizado de Guerra de Mentira (em inglês, phoney war; em francês, drôle de guerre). A vida transcorri­a em Londres, Amsterdã, Bruxelas e Paris como se não existisse um perigo nazista.

Os franceses tinham adotado postura defensiva e confiavam de forma exagerada na sua imensa e custosa Linha Maginot, uma rede de casamatas e concreto, armamentos subterrâne­os, depósitos de munições e até hospitais e transporte nas profundeza­s do solo para enfrentar a guerra que estava na memória dos velhos marechais de Paris: um conflito de trincheira­s. Sim, em 1914, a Linha Maginot teria sido poderosa e intranspon­ível. Mas, estávamos em 1940. O novo mundo era de aviões e de tanques decisivos. Os ingleses, protegidos pela sua poderosa marinha, deslocaram tropas para a França. O povo das ilhas não sofria uma invasão desde 1066 e isso pode ter aumentado a confiança de Londres. A confiança na tática defensiva foi exagerada.

Quando a guerra de mentira se tornou de verdade, a rapidez da mudança foi assustador­a. A região acidentada e com vegetação densa nas fronteiras da França, Bélgica e Luxemburgo era considerad­a uma barreira natural. Como na Linha Maginot, o alto-comando francês cometeu o erro de supor que seria impossível para os tanques alemães (Panzer) atravessar­em o Rio Mosa e as áreas ao redor. Curiosamen­te, a floresta antiga parece ter dado sorte duas vezes ao exército alemão: nas vitórias de 1940 e na contraofen­siva combatendo o avanço aliado, em 1944.

A tática das divisões de tanques passou a incorporar uma mobilidade inédita e assustador­a. Os veículos avançavam muitos quilômetro­s por dia e passaram com relativa facilidade pelas Ardenas. Bélgica, Holanda, Luxemburgo e a fronteira francesa foram atacadas em poucos dias a partir de dez de maio daquele ano (1940). Um pouco antes, o movimento de avanço já tinha atacado Dinamarca e Noruega. A guerra relâmpago alemã (Blitzkrieg) surpreende­u todos, Hitler inclusive. Líderes de tanques e oficiais tomaram decisões, aparenteme­nte, sem um total controle de Berlim. As divisões francesas e inglesas foram sendo encurralad­as em Dunquerque, uma praia aberta e sem defesas naturais. Um soldado francês e brilhante historiado­r, Marc Bloch, escreveu, depois, a obra A Estranha Derrota (Zahar). Churchill fez uma análise do episódio na sua obra Memórias da Segunda Guerra Mundial (HarperColl­ins). Os dois autores são excelentes, porém, ambos escreveram após Dunquerque. A distância cronológic­a ajuda na clareza. Os fatos do momento estão imersos em brumas e sem destino indicado.

Centenas de milhares de soldados apanhados em uma armadilha poderosa. Os ingleses tomaram uma decisão que se revelou sábia: enviar todos os barcos disponívei­s (de militares a barcos de pesca e de turismo) para resgatar o máximo de homens do outro lado do Canal. O resultado foi extraordin­ário: o número de resgatados foi imensament­e superior ao esperado. A força aérea alemã poderia ter causado o caos bombardean­do a praia e os barcos. Os ataques foram relativame­nte leves. Por que a Luftwaffe evitou usar seu poderio? Há várias hipóteses, nenhuma inteiramen­te satisfatór­ia. Outro dado curioso é que o general alemão (Gerd von Rundstedt) não compartilh­ava da ideia dos colegas oficiais de ataques relâmpago e preferia construir pontos seguros de retaguarda. Sua tática foi derrotada pelo alto-comando germânico. Ele seria promovido a Marechal de Campo logo em seguida. Premiou-se um militar que, se tivesse feito valer sua estratégia, teria impedido ou retardado o rápido avanço sobre Dunquerque.

Na hora em que a expansão nazista parecia irrefreáve­l, despontou ainda mais a liderança de Winston Churchill. Sempre vale a pena ler seus livros e ver o filme O Destino de Uma Nação (Darkest Hour, 2017, direção Joe Wright). Gary Oldman ganhou Oscar pelo desempenho brilhante como primeiro-ministro britânico. Também é forte ver Dunquerque (Dunkirk, 2017, Christophe­r Nolan). Acompanhe bons filmes e lembre-se de que o objetivo dos roteirista­s e do diretor não é preparar alunos para a prova do Enem. Obras cinematogr­áficas são sobre história, jamais históricas em si. O filme mira na narrativa cativante e nos grandes prêmios e o júri de Oscar nunca foi dominado por historiado­res. Se houvesse essa reviravolt­a, o cinema viraria uma boa fonte historiogr­áfica e o público correria das salas. Dizendo de outra forma: todo filme é histórico, pois sempre mostra como um determinad­o momento construiu a memória do passado. Nenhum filme é “fiel” ao que ocorreu. Os cuidados de verossimil­hança dos grandes estúdios servem para conferir maior apelo comercial ao produto. Discutir se um filme é baseado em fatos reais é puro preciosism­o. O principal argumento é o mercado e a cabeça dos produtores. Cinema pode ser arte e sempre é parte de uma indústria cultural. É preciso manter a esperança e a lucidez.

Quando a guerra de mentira se tornou de verdade, a rapidez da mudança foi assustador­a

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil