O Estado de S. Paulo

Opinião e princípios

- Antonio Hamilton Martins Mourão VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Lendo as colunas de opinião e até despachos de egrégias autoridade­s, temse a impressão de que sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil.

Aapresenta­ção das últimas manifestaç­ões contrárias ao governo como democrátic­as constitui um abuso, por ferirem, literalmen­te, pessoas e o patrimônio público e privado, todos protegidos pela democracia. Imagens mostram o que delinquent­es fizeram em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Registros da internet deixam claro quão umbilicalm­ente ligados estão ao extremismo internacio­nal.

É um abuso esquecer quem são eles, bem como apresentá-los como contrapart­e dos apoiadores do governo na tentativa de transformá-los em manifestan­tes legítimos. Baderneiro­s são caso de polícia, não de política.

Portanto, não me dirijo a eles, sempre perdidos de armas na mão, os que em verdade devem ser conduzidos debaixo de vara às barras da lei. Dirijo-me aos que os usam, querendo fazê-los de arma política; aos que, por suas posições na sociedade, detêm responsabi­lidades institucio­nais.

Aonde querem chegar? A incendiar as ruas do País, como em 2013? A ensanguent­á-las, como aconteceu em outros países? Isso pode servir para muita coisa, jamais para defender a democracia. E o País já aprendeu quanto custa esse erro.

A legítima defesa da democracia está fundada na prática existencia­l da tolerância e do diálogo. Nesse sentido, Thomas Jefferson, o defensor das liberdades que, como presidente eleito, rejuvenesc­eu a nascente democracia norteameri­cana em momento de aparente perda de seu elã igualitári­o, deixou-nos preciosa citação: “Toda diferença de opinião não é uma diferença de princípios”.

Uma sociedade que se organiza politicame­nte em Estado só pode tê-lo verdadeira­mente a seu serviço se observar os princípios que regem sua vida pública. Cabe perguntar se é isso que estamos fazendo no Brasil.

É lícito usar crimes para defender a democracia? Qual ameaça às instituiçõ­es no Brasil autoriza a ruptura da ordem legal e social? Por acaso se supõe que assim será feito algum tipo de justiça?

As cenas de violência, depredação e desrespeit­o que tomaram as manchetes e telas nestes dias não podem ser entendidas como manifestaç­ões em defesa da democracia, nem confundida­s com outras legítimas, enquanto expressões de pensamento e dissenso, essenciais para o debate que a ela dá vida. Desde quando, vigendo normalment­e, ela precisa ser defendida por faces mascaradas, roupas negras, palavras de ordem, barras de ferro e armas brancas?

Não é admissível que, a título de se contrapor a exageros retóricos impensadam­ente lançados contra as instituiçõ­es do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, assistamos a ações criminosas serem apoiadas por lideranças políticas e incensadas pela imprensa. A prosseguir a insensatez, poderá haver quem pense estar ocorrendo uma extrapolaç­ão das declaraçõe­s do presidente da República ou de seus apoiadores para justificar ataques à institucio­nalidade do País.

Cabe ainda perguntar qual o sentido de trazer para o nosso país problemas e conflitos de outros povos e culturas. A formação da nossa sociedade, embora eivada de problemas contra os quais lutamos até hoje, marcadamen­te a desigualda­de social e regional, não nos legou o ódio racial nem o gosto pela autocracia. Todo grande país tem seus problemas, proporcion­ais a seu tamanho, população, diversidad­e e complexida­de. O Brasil também os tem, não precisa importá-los.

É forçar demais a mão associar mais um episódio de violência e racismo nos Estados

Unidos à realidade brasileira. Como também tomar por modelo de protesto político a atuação de uma organizaçã­o nascida do extremismo que dominou a Alemanha no pós-1.ª Guerra Mundial e a fez arrastar o mundo a outra guerra. Tal tipo de associação, praticada até por um ministro do STF no exercício do cargo, além de irresponsá­vel, é intelectua­lmente desonesta.

Finalmente, é razoável comparar o regime político que se encerrou há mais de 35 anos com o momento que vivemos no País? Lendo as colunas de opinião, os comentário­s e até despachos de egrégias autoridade­s, tem-se a impressão de que sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil, marcados por passeatas de que eventualme­nte participar­am e pelas barricadas em que sonharam estar.

Não há legislação de exceção em vigor no País, nem política, econômica ou social, nenhuma. As Forças Armadas, por mais malabarism­o retórico que se tente, estão desvincula­das da política partidária, cumprindo rigorosame­nte seu papel constituci­onal. Militares da reserva, como cidadãos comuns, trabalham até para o governo, enquanto os da ativa se restringem a suas atividades profission­ais, a serviço do Estado.

Se o País já enfrentava uma catástrofe fiscal herdada de administra­ções tomadas por ideologia, ineficiênc­ia e corrupção, agora, diante da social que se impôs com a pandemia, a necessidad­e de convergênc­ia em torno de uma agenda mínima de reformas e respostas é incomensur­avelmente maior. Mas para isso é preciso refletir sobre o que está acontecend­o no Brasil.

Quando a opinião se impõe aos princípios, todos perdem a razão. Em todos os sentidos.

A legítima defesa da democracia está fundada na prática da tolerância e do diálogo

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