Constituição veta intervenção, diz procurador-geral
Depois de afirmar que ‘um poder que invade competência de outro não deve merecer proteção’, procurador-geral atenua fala em nota
Após sugerir que as Forças Armadas podem atuar para garantir a independência entre os Poderes, o procurador-geral Augusto Aras afirmou ontem em nota que a Constituição “não permite intervenção militar”.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse ontem que, no seu entendimento, as Forças Armadas podem ser usadas em ações pontuais, como garantir a lei e a ordem num eventual cenário de ruptura institucional. O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores têm citado o artigo 142 da Constituição, de forma distorcida, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, para justificar uma intervenção militar para resolver a crise do governo com o Supremo Tribunal Federal (STF). Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no entanto, o artigo não permite isso.
As declarações de Aras foram dadas ao programa Conversa
com Bial, da TV Globo, ontem de madrugada. Mais tarde, ele divulgou nota em que afirma que as instituições estão “funcionando normalmente” e que a Constituição brasileira “não permite intervenção militar”.
“A Constituição não admite intervenção militar. Ademais, as instituições funcionam normalmente. Os poderes são harmônicos e independentes entre si. Cada um deles há de praticar a autocontenção para que não se venha a contribuir para uma crise institucional. Conflitos entre Poderes constituídos, associados a uma calamidade pública e a outros fatores sociais concomitantes, podem culminar em desordem social”, escreveu Aras. “As Forças Armadas existem para a defesa da pátria, para a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de quaisquer destes, para a garantia da lei e da ordem, a fim de preservar o regime da democracia participativa brasileira.”
O procurador-geral se manifestou após ser cobrado a dar explicações sobre declarações feitas no programa de TV. Ao apresentador, Aras afirmou: “Um poder que invade a competência de outro poder, em tese, não deve merecer a proteção desse, garante da Constituição. Porque se os poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza.” Indagado se o Brasil está próximo desse cenário, Aras respondeu: “Não será o procurador-geral o catalisador de uma crise institucional dessa natureza”.
Repercussão. A posição de Aras gerou críticas dentro e fora do Ministério Público Federal. Para o subprocurador-geral da República Nicolao Dino, “contraria o que diz a Constituição, pois considera a falsa premissa de que a democracia é tutelada pelas armas.”
“É uma visão equivocada do regime democrático e do sistema de freios e contrapesos, pois este funciona a partir do equilíbrio entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e sob a fiscalização do MP (art 127, CF). Num estado democrático de direito, o crivo de qualquer possível conflito entre Poderes é o Judiciário, sendo o filtro último o STF”, acrescentou Dino. Para um outro integrante da PGR, Aras claramente recuou na nota, em relação ao que disse na entrevista, como forma de reduzir danos.
No Twitter, o ministro do STF Gilmar Mendes afirmou que é “incompatível com a Constituição de 1988 a ideia de que as forças armadas podem fechar o STF ou o Congresso”. “O Exército não é milícia”, disse.
A OAB divulgou ontem um parecer jurídico em que conclui que o artigo 142 da Constituição não autoriza uma intervenção militar. Para a entidade, a Carta não confere às Forças Armadas a “atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais, mas demanda sua mais absoluta deferência perante toda a Constituição”.
“A interpretação que confere às Forças Armadas a atribuição de um Poder Moderador, ao contrário, ignora os limites constitucionais a elas impostos, para livrá-las de qualquer controle constitucional, tornando-as a intérprete máxima da Carta Cidadã”, diz o parecer.
Bolsonaro e apoiadores citam o artigo 142 para criar a narrativa de que não seria ilegal um decreto de “intervenção militar” para conter o que consideram excessos do Supremo Tribunal Federal. Juristas sem vínculos com o governo consultados pelo Estadão, porém, afirmam que ao incentivar esse entendimento, presidente flerta com crimes de responsabilidade.
O Ministério da Defesa afirmou que as Forças Armadas “sempre cumpriram as suas atribuições constitucionais previstas no artigo 142, sem necessidade de parecer jurídico oficial, não estando previsto no referido artigo ‘intervenção militar’ conforme já ressaltado publicamente, por mais de uma vez”.