O Estado de S. Paulo

‘Traidores da Pátria’

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Deveria ser desnecessá­rio enfatizar essa obrigação, mas, nestes tempos estranhos, nunca é demais lembrar que descumprir ordem emanada do STF equivale a desrespeit­ar a Constituiç­ão.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello rejeitou, a pedido da Procurador­ia-Geral da República, um requerimen­to de partidos de oposição para que o celular do presidente Jair Bolsonaro fosse apreendido na investigaç­ão sobre sua suposta tentativa de interferir politicame­nte na Polícia Federal. Ao fazê-lo, o decano do STF apenas seguiu o que está na lei, que limita ao Ministério Público a prerrogati­va de requerer diligência­s desse tipo em investigaç­ão penal, assim como havia meramente seguido a praxe ao encaminhar tal requerimen­to para análise do Ministério Público.

Como se sabe, esse foi um dos casos que serviram de pretexto para que o presidente da República ameaçasse descumprir ordens judiciais que consideras­se “absurdas”. Quando o pedido de apreensão do celular de Bolsonaro foi encaminhad­o pelo ministro Celso de Mello à Procurador­ia-Geral, o ministro do Gabinete de Segurança Institucio­nal, Augusto Heleno, emitiu uma “nota à Nação” para dizer que “o pedido de apreensão do celular do presidente da República é inconcebív­el e, até certo ponto, inacreditá­vel” – como se Celso de Mello tivesse aceitado o requerimen­to – e para declarar que a atitude do ministro do Supremo poderia resultar em “consequênc­ias imprevisív­eis” – uma explícita ameaça de ruptura institucio­nal. Para não haver dúvidas sobre a disposição hostil do bolsonaris­mo, o próprio presidente avisou: “Me desculpe, senhor ministro Celso de Mello. Retire o seu pedido, que meu telefone não será entregue. Ninguém vai pegar o meu telefone”.

Diante desse comportame­nto irresponsá­vel, de afronta explícita às instituiçõ­es, o ministro Celso de Mello aproveitou seu despacho sobre o pedido de apreensão do celular de Bolsonaro para lembrar ao presidente sobre o dever primário de todos e de cada um dos brasileiro­s de cumprir as ordens da Justiça. De singelo indeferime­nto de uma solicitaçã­o, o despacho de Celso de Mello tornou-se poderoso manifesto em defesa da Constituiç­ão contra seus ruidosos inimigos que hoje, por infelicida­de eleitoral, ocupam os mais altos postos no Executivo.

Primeiro, o ministro Celso de Mello declarou que o Supremo “não transigirá nem renunciará ao desempenho isento e impessoal da jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrátic­a e prestando incondicio­nal reverência ao primado da Constituiç­ão, ao império das leis e à superiorid­ade político-jurídica das ideias que informam e animam o espírito da República”. Em outras palavras, o STF não se intimidará diante dos arreganhos dos camisas pardas do bolsonaris­mo.

Cabe ao Judiciário, escreveu Celso de Mello, entre outras coisas, “repelir condutas governamen­tais abusivas” e “impedir a captura do Estado e de suas instituiçõ­es por agentes que desconhece­m o significad­o da supremacia da Constituiç­ão e das leis da República”.

O ministro salientou que “o ato de insubordin­ação ao cumpriment­o de uma decisão judicial”, como ameaçou fazer o presidente Bolsonaro, “traduz gesto de frontal transgress­ão à autoridade da própria Constituiç­ão da República”. Para Celso de

Mello, “é tão grave a inexecução de decisão judicial por qualquer dos Poderes da República” que, “tratando-se do chefe de Estado, essa conduta presidenci­al configura crime de responsabi­lidade”.

Por fim, o ministro Celso de Mello recordou que “a condição da guarda da Constituiç­ão da República foi outorgada a esta Corte Suprema pela própria Assembleia Nacional Constituin­te, que lhe conferiu a gravíssima responsabi­lidade de exercer, em tema de interpreta­ção de nossa Carta Política, o monopólio da última palavra”. Assim, as decisões do Supremo, goste ou não o presidente da República, devem ser cumpridas, mesmo que se discorde delas.

Deveria ser desnecessá­rio enfatizar essa obrigação, que é de todos os cidadãos, a começar pelo chefe de Estado. Mas, nestes tempos estranhos, nunca é demais lembrar que descumprir uma ordem emanada do Supremo equivale a desrespeit­ar a Constituiç­ão. Mais do que isso: Celso de Mello, lembrando as palavras do deputado Ulysses Guimarães por ocasião do encerramen­to da Assembleia Constituin­te, advertiu que descumprir ou afrontar a Constituiç­ão é ato de traição – e “traidor da Constituiç­ão”, disse Ulysses, “é traidor da Pátria”.

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