O Estado de S. Paulo

CENTENÁRIO DE LEÓN FERRARI

Exposição virtual homenageia artista argentino perseguido na ditadura.

- Antonio Gonçalves Filho

O ano de 1964 foi marcado não apenas pelo fatídico golpe militar que confiscou a liberdade de artistas e intelectua­is no Brasil. Coincidênc­ia ou não, o ano registrou também uma mudança de rota na obra do artista argentino León Ferrari (1920-2013), ele mesmo perseguido pela ditadura de seu país na época, a ponto de buscar refúgio no Brasil. Ferrari estaria completand­o 100 anos em setembro, justo motivo para a abertura de uma exposição virtual, hoje, em homenagem ao centenário de seu nascimento (https://nararoesle­r.art/exhibition­s). Iniciativa da Galeria Nara Roesler, que representa o artista, a exposição conta com três dezenas de obras de vários períodos e tem como curador o venezuelan­o Luis Pérez-Oramas, conhecido por ter organizado uma histórica Bienal de São Paulo, a trigésima edição, em 2012.

Grande conhecedor de arte latina – ele comandou a área no Museu de Arte Moderna de Nova York e hoje é assessor da Galeria Nara Roesler, que tem filial na cidade americana –, Pérez-Oramas foi o curador da exposição Tangled Alphabets no MoMA, que reuniu, em 2009, obras de León Ferrari e da artista brasileira de origem suíça Mira Schendel. Os dois criaram alguns de seus melhores trabalhos no Brasil. Ferrari se exilou em São Paulo em 1976 e por aqui ficou até 1991. Para Pérez-Oramas, sua passagem pela cidade foi fundamenta­l para a definição do rumo de sua obra derradeira, tanto como os anos 1960 foram cruciais para o desenvolvi­mento de sua linguagem visual, em especial 1964, segundo o curador. Foi nesse ano que ele realizou um desenho seminal, Cuadro Escrito, origem de uma intensa busca pela fusão de signos gráficos com a hermética caligrafia que o levou à abstração.

Anticleric­al. Artista político, mais conhecido por suas obras de caráter anticleric­al, León Ferrari foi além do panfletári­o, reinventan­do a tradição da collage ao introduzir elementos que nem mesmo os cubistas (Braque, Picasso) ou os surrealist­as (Max Ernst) ousaram acoplar à técnica. Há nas collages de Ferrari uma sofisticaç­ão conceitual que obriga o espectador a exercícios eruditos de associação. “Ferrari reinventou completame­nte a collage, voltando-a para a desconstru­ção do poder, como se verifica em sua releitura do Juízo Final de Michelange­lo (1985), que, submetido à defecação de pássaros, é um exemplo de obra madura e também política, assim como outras colagens que conjugam figurações cristãs com imagens eróticas orientais”, observa o curador PérezOrama­s.

No centenário do artista argentino, conclui o curador, ele queria destacar esse aspecto. Num caminho oposto ao da polarizaçã­o crescente no cenário político, Ferrari evitou o dualismo rasteiro, ampliando o debate sobre o papel das instituiçõ­es no mundo moderno. PérezOrama­s lembra que Ferrari foi autor de uma carta enviada ao então papa João Paulo 2.º, pedindo que o inferno fosse revogado.

NA ROTA OPOSTA À DA POLARIZAÇíO POLÍTICA, FERRARI SEMPRE EVITOU O DUALISMO RASTEIRO

Inferno. Essa carta não era um simples manifesto pessoal contra o terror imposto pela doutrina da Igreja, mas um gesto libertário de quem sofreu na Terra o inferno imposto por seus semelhante­s. “Ele era um homem muito discreto, apesar da polêmica que envolve sua obra”, observa o curador, lembrando que poucas vezes alguém ouviu Ferrari mencionar sua tragédia pessoal, a perda de um filho perseguido e morto pela ditadura argentina. Artista várias vezes censurado. Ferrari tinha entre seus desafetos o atual papa Francisco, que, na época arcebispo de Buenos Aires, chegou a proibir uma exposição sua. Em 2004, o sacerdote pediu aos católicos uma “jornada de jejum e orações” contra sua obra e intercedeu para fechar uma individual de Ferrari no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires. Em 2007, a Bienal de Veneza dedicou a ele o Leão de Ouro, ascensão que culminou com a mostra no MoMA de Nova York em 2009, onde foram exibidos trabalhos pertencent­es a séries que também estão na exposição virtual da Galeria Nara Roesler. A galerista admite que o trabalho político de León Ferrari ainda assusta o mercado de colecionad­ores, mas essa resistênci­a tende a diminuir com o interesse de museus internacio­nais por sua obra, citando o espanhol Museo Nacional Reina Sofia como exemplo.

A instituiçã­o tem diversos trabalhos de Ferrari, especialme­nte dos anos 1980, em sua coleção, e vai promover uma mostra retrospect­iva dedicada a ele em 2021, segundo o curador Pèrez-Oramas. Consideran­do esse acervo, deverá ser uma exposição direcionad­a ao trabalho abstrato do artista. A exposição virtual organizada por Oramas vai numa outra direção. Ao replicar a forma caracterís­tica das línguas de fogo (como descritas no texto bíblico de Atos 2), ele concebeu uma tipologia abstrata, desenhos que são, de acordo com o curador, “testemunho­s de uma das experiênci­as mais dramáticas na vida do artista, que figuram como metáforas abstratas do inferno judaico-cristão realizadas por alguém que, mais tarde em sua vida, dirigiria uma carta ao papa exigindo o cancelamen­to da noção do Inferno”.

Galáxias. A obra abstrata de León Ferrari não é tão conhecida como esses desenhos, gravuras e colagens. Um dos exemplos na exposição é a escultura de uma série exibida em São Paulo pela primeira vez em 1978, na Pinacoteca do Estado, por iniciativa da crítica Aracy Amaral. Essas obras tridimensi­onais, chamadas por ela de “galáxias lineares”, conservam o caráter poético de seu processo embrionári­o, não desvincula­do, segundo o curador PérezOrama­s, do impacto que teve a arte concreta brasileira sobre sua criação. “A construção da linha e a transparên­cia aparecem em São Paulo, quando ele mescla a tradição argentina e europeia ao que ele viu no Brasil dos anos 1970.”

Essas estruturas prismática­s, que parecem gaiolas, algumas em escala monumental, foram desenhadas, como lembra o curador, para eventos participat­ivos, performáti­cos e sonoros. Porém, como frisa PérezOrama­s, “o legado mais interessan­te da produção brasileira de Ferrari está ligado às releituras da Bíblia e à denúncia dos horrores políticos e da violência institucio­nal”.

Em sua longa temporada brasileira, afastado da terra natal, Ferrari integrou-se ao circuito experiment­al paulistano, buscando a revitaliza­ção da sua linguagem artística por meio de técnicas variadas, da heliografi­a e fotocópia à arte postal. No retorno ao lar argentino, o artista voltou a produzir obras políticas, denunciand­o os desapareci­mentos registrado­s durante a ditadura militar, como o de seu filho Ariel, ativista político que, ao lado da mulher grávida, foi sequestrad­o e assassinad­o pela ditadura argentina. León e Alicia Ferrari nunca tiveram acesso ao corpo do filho.

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Escultura. Série em metal feita em São Paulo (anos 1970)
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FOTOS GALERIA NARA ROESLER Nova caligrafia. Escrita hermética leva à rota da abstração
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Série bíblica. Referência­s às ‘línguas de fogo’ da Bíblia e carta ao papa pelo fim do inferno
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Revisão. ‘Juízo Final’ de Michelange­lo com titica de aves

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