O Estado de S. Paulo

QUANDO O IRA! SOLTA A VOZ

Após 13 anos, banda lança disco que traduz os novos tempos.

- Julio Maria

Seria um disco do Ira!, um bom disco do Ira!, com as guitarras timbrando e as composiçõe­s de Edgard Scandurra em plena forma criativa, mesmo nas métricas nem sempre polidas para a interpreta­ção que Nasi conseguiu reinventar a si mesmo usando as limitações da própria voz. Um disco importante, lançado 13 anos depois do que havia sido o último de inéditas antes da confrontaç­ão entre os integrante­s e o fim, Invisível DJ. Ira, o novo álbum, não por acaso sem o acento de exclamação, já seria um marco importante se fosse lançado até janeiro de 2020, mas agora ganha ainda outra significân­cia quando soa como se estivesse atendendo a um chamamento. No momento em que o País desmorona, o rock and roll, ou a parte de resistênci­a que lhe restou depois da debandada conservado­ra, também pode soar como uma esperança.

A esperança que soa em Ira, o primeiro disco da banda paulistana a levar seu próprio nome no título, não é das passeatas na Paulista, apesar de letras como O Homem Cordial Morreu trazer versos como “e se eu me distanciar do que clama meu interior / que seja por um instante e que eu saia do torpor / de ver tudo acabar, tudo o que se sonhou / esperando por alguém que vá e lute por mim / não pode ser assim / que eu esteja ao seu lado / lado a lado por favor”. A força de canções inteiramen­te novas – e o inteiramen­te não é pleonasmo no caso de canções – é uma quase milagrosa reação em si de uma banda liderada por dois homens de 58 anos dada por muitos como produtivam­ente extinta mesmo com um show redentor para milhares de pessoas na Virada Cultural de 2014, no pósrompime­nto. Seu retorno às rotativas, sobretudo com músicas como O Amor Também Faz Errar, Mulheres À Frente da Tropa, A Torre e O Homem Cordial Morreu, acessa os matizes do Ira! sem acessar o velho Ira! E quando um fã sente isso, ele percebe que, apesar de algumas baixas, muitos de seus heróis ainda caminham a seu lado.

“O Ira sem acento é para traduzir os tempos da ira em que estamos vivendo, esse sentimento de confronto. Não tínhamos também nenhum álbum com o nome da banda”, diz Nasi. O disco já estava praticamen­te pronto quando a pandemia atropelou o mundo, por isso não entenda errado a frase da música Nossa Amizade quando ela diz “deixemos assim, alguns metros de distância, agora é assim. Atrás das paredes de concreto, deixamos assim”. Ao olhar para trás, Nasi diz o que vê. Ele não queria fazer o projeto Ira! Folk, foi resistente, mas acabou aceitando o argumento do irmão, Airton Junior, de que o formato o colocaria em teatros que nunca viram as bandas de rock com muito carinho. Sobre o disco Invisível DJ, de 2007, ele avalia com ressalvas. “Eu fui convencido a fazer, mas entendo que aquele é um disco mais ou menos do Ira!”

O tempo passou e a banda volta em uma configuraç­ão que redistribu­i a política interna, o que pode facilitar o fluxo de operações. Com o baterista Evaristo Pádua e o baixista Johnny Boy, como diz Nasi, a sonoridade dos registros da banda é respeitada ao mesmo tempo que as decisões não precisam mais passar pelas desgastant­es votações dos quatro integrante­s originais. “Não que Johnny e Evaristo não sejam importante­s, claro que são, mas quero dizer que a tocha está nas nossas mãos.” Aos fãs que perguntare­m até onde pode durar o novo armistício entre Nasi e Edgard, ou Nasi e seu próprio irmão que também trabalha a seu lado, Junior, Nasi diz: “Olha, sendo bem sincero, nós do grupo sabemos que um dia podemos decidir uma parada, mas isso não será mais da forma como foi, com brigas. Podemos hoje fazer isso com tranquilid­ade.”

O Ira!, assim como o próprio rock and rol, surge de um universo majoritari­amente masculino, muitas vezes machista. Assim, vira um outro marco do disco a canção Mulheres à Frente da Tropa, composta e cantada por Edgard Scandurra. “Achei ótimo quando ele pediu para cantar essa, sempre tivemos algo no disco em que ele canta”, diz o vocalista. A canção tem algumas das ideias de arranjos mais belas do álbum, aquelas que o grupo costuma acertar quando sai do formato de front do rock e parte para cordas e outras sensibilid­ades. Scandurra lembra que sua trajetória está cercada de trabalhos com mulheres, desde sua passagem pelo grupo As Mercenária­s, em 1983, até produções e participaç­ões em trabalhos de cantoras, além das parcerias que fez para criar as novas canções, como as duas com Silvia Tape (Respostas e Você Me Toca) e uma com Virginie Boutaud (Efeito Dominó ). Mas reconhece também que era preciso marcar território, posicionan­do-se em uma causa dos novos tempos. “Era importante para o Ira! entrar nesse terreno. O rock carrega muito esse estigma do sexo-drogas-rock and roll, existem as lendas

APOLLO 9 SOUBE ACESSAR OS MATIZES DOS ANOS 80 SEM TRAZER JUNTO A NOSTALGIA

das groupies (as mulheres que seguiam as bandas oferecendo-se aos roqueiros), as tietes, um olhar sempre de exploração das fãs, aquele olhar de cima para baixo.” Sua canção, com cordas de violão dedilhadas em acordes abertos, cria um clima reconforta­nte para versos implacávei­s: “Ouçam os gritos das ruas / peito à mostra, vozes agudas / ouçam as bombas que caem no solo / tremem os corpos das crianças de colo / mulheres à frente da tropa... / Jovens mulheres, adolescent­es / lutam por todos até os descrentes / imóveis ficamos sem reação / somente nos restam os calos nas mãos /

mulheres à frente da tropa.” Há um coro de mulheres, entre elas a cantora Virginie Boutaud, da banda Metrô, e um belo clipe gravado nas dependênci­as da Ocupação 9 de Julho, dirigido por Luciana Sérvulo, que conta uma história a partir do sonho de uma senhora que cochila em sua poltrona.

Manter a sonoridade do Ira! relevante em 2020 foi também, na fala dos integrante­s, uma conquista do produtor Apollo 9, um conhecedor de anos da sonoridade sem grandes concessões da banda. O que se ouve é um álbum de solos de guitarra elásticos, sem as métricas de tempos milimetrad­os de outros discos, e com canções com muitas possibilid­ades de aberturas para serem destrincha­das em shows ao vivo, assim que for possível fazêlos. “O conceito de guitarra nesse disco acabou se tornando algo superforte, o que nem sempre aconteceu em outros álbuns”, diz Scandurra. “A gente às vezes se preocupa com as canções, os arranjos, a estética, e quando vê, a guitarra está escondida lá atrás, pequena na composição.”

A crítica muitas vezes chamou a atenção para uma certa adolescênc­ia nas letras de Edgard em outros discos, o compositor de quase tudo no grupo. Os anos precisavam passar para que pudesse contar aquilo que se viveu, ou o que não viveu, assim que chegasse vivo a 2020.

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ANA KARINA ZARATIN
 ?? ANA KARINA ZARATIN ?? Sem pressão. Se precisar, grupo pode decretar parada
ANA KARINA ZARATIN Sem pressão. Se precisar, grupo pode decretar parada

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