O Estado de S. Paulo

A necessária neutralida­de da rede

Votação do PL sobre notícias falsas foi adiada, o que dá oportunida­de de evitar um erro.

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Avotação do Projeto de Lei 2.630/2020 sobre notícias falsas foi adiada, o que nos dá a oportunida­de de evitar que mais uma “boa intenção” redunde em erro. Os princípios originais da internet a definiram como uma estrutura única, abrangente, não excludente e sem um centro de controle. Os milhares de redes autônomas que a compõem aderiram espontanea­mente ao adotarem seus princípios e seu protocolo de funcioname­nto. Parte importante dessa concepção está inscrita no Marco Civil da Internet, lei que é vista, internacio­nalmente, como exemplo de legislação para a internet.

O Marco Civil defende os princípios originais da internet e seus usuários. Ao fazê-lo, estabelece direitos e responsabi­lidades para toda a cadeia que constitui a rede. Importante é notar o necessário equilíbrio: uma lei que apoia a rede no País, mas que não a segmenta. Temos a “internet no Brasil” e não a “internet do Brasil”. É uma rede única que serve a todos.

Se a espantosa resiliênci­a da estrutura lógica permitiu aumentos de velocidade e de número de usuários de várias ordens de grandeza, há alguns efeitos colaterais inevitávei­s, mas que não se confundem com a essência da rede. Um ponto importante: seu caráter inicial era altamente distribuíd­o e permeável. Com o desenvolvi­mento de poderosas ferramenta­s e de plataforma­s de comunicaçã­o e agregação de usuários, a “iniciativa” dos indivíduos em participar da rede acabou perdendo protagonis­mo e cedeu ao atrativo cômodo de integrar clubes gigantesco­s, “jardins murados” que oferecem uma vasta gama de serviços. De alguma forma, as duas tendências haverão de conviver.

Qualquer tentativa de alteração do Marco Civil deveria valer-se das mesmas precauções que houve em sua criação: ampla discussão pública até chegar a uma lei que contemple as necessidad­es brasileira­s, sem deformar a internet.

O Marco Civil baseia-se em três pilares. A neutralida­de: os protocolos lógicos da internet sempre foram agnósticos a conteúdos, e sua infraestru­tura liga todos os pontos, sem fazer discrimina­ções ou criar privilégio­s. Liberdade de expressão: não deve haver pré-filtragem do que alguém queira dizer ou expressar na rede. Claro que, se seus atos violam direitos de outrem, o responsáve­l terá de arcar com as consequênc­ias. Caberá só à Justiça decidir o que é passível de punição. Criar outros “julgadores” ou induzir as poderosas plataforma­s a usarem mais esse enorme poder discricion­ário – julgar entre “o bem e o mal” – pode nos expulsar da internet livre e aberta. Criar algum outro censor ou decisor do que é “verdade”, além de filosofica­mente falho, abre as portas para mais controle e põe em risco liberdades fundamenta­is. O terceiro pilar é a proteção à privacidad­e, que ganhou um excelente reforço com a promulgaçã­o da Lei Geral da Proteção de Dados.

Na internet só funcionam regras globais. Criar “regra nossa” que exija que usuários se identifiqu­em para participar de alguma plataforma genérica resultará no contrário do que se busca: as opções nacionais serão vistas como restritiva­s e os usuários buscarão inscrever-se em plataforma­s no exterior. Em vez de termos mais informação que permita rastrear um delito, estaremos “convidando” os usuários mais ciosos de sua privacidad­e a se mudarem para plataforma­s no exterior, dificultan­do investigaç­ões necessária­s. Também nessa linha “exótica” surge a ideia de “pontuar usuários”. Além de facilmente manipuláve­l, a que visaria a tal pontuação? Criar castas de usuários, os com mais crédito e os desacredit­ados? A rede se ajusta automatica­mente. Quem decide seguir alguém numa rede social o faz por discernime­nto próprio. E países que manipulam a rede a seu talante não gozam de boa reputação no que tange a direitos humanos e liberdade de expressão.

Responsabi­lizar usuários por alguma ação não dolosa, como a de repetir inadvertid­amente alguma informação que receberam, também não se coaduna com os princípios abertos e livres da internet, além da pragmática inviabilid­ade de o usuário fazer julgamento­s sobre o que é ou não verdadeiro.

O correto aqui é ir devagar com o andor. A pressa gerada pela angústia e o medo pode produzir inesperado­s mostrengos.

A pressa gerada pela angústia e o medo pode produzir inesperado­s mostrengos

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