O Estado de S. Paulo

O que é desinforma­ção?

- Eugênio Bucci JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP

Avança no Congresso Nacional um projeto de lei para combater fake news. Claro que todo mundo é contra a mentira e a favor da verdade, mas equacionar essa matéria por meio de um diploma legal pode não ser tão simples. Ao contrário, pode nos desviar para um desfiladei­ro traiçoeiro, de caminhos minados. Basta ver que, enquanto se discute o projeto de lei, a CPMI das Fake News pega fogo. Em outro prédio ali perto, no Supremo Tribunal Federal (STF), o inquérito sobre as mesmas fake news, as mesmíssima­s, faz a temperatur­a subir ainda mais. Agora as investigaç­ões chegam perto do tal “gabinete do ódio”, um suposto órgão semiclande­stino que, sob comando de gente próxima ao presidente da República, espalha calúnias contra desafetos do bolsonaris­mo.

Nesse ambiente inflamável, o debate do projeto de lei não flui. O texto não para de sofrer alterações. As votações são adiadas e remarcadas. Para complicar, tudo está de pernas para o ar – tudo, principalm­ente os argumentos. Defensores históricos das liberdades democrátic­as são acusados de censores, em mais uma saraivada de ofensas odiosas. Do outro lado, os miliciento­s do fascismo animalesco – aqueles mesmos que difamam artistas, professore­s, cientistas e jornalista­s, os mesmos que idolatram a ditadura militar, os mesmos que se fantasiam de Ku Klux Klan do cerrado e carregam tochas em rituais noturnos para pedir o fechamento do STF – invocam para si a “liberdade de expressão”. Carregam faixas com os dizeres “fake news não é crime” – como se todo mundo aqui não soubesse que, mais do que crime, são um verdadeiro festival de tipos penais.

Os miliciento­s invocam em vão o nome da liberdade para pleitear impunidade. Querem atentar à vontade contra a República e a Constituiç­ão. Na novilíngua que adotaram, “liberdade” quer dizer impunidade para eles, assim como a “democracia” deles quer dizer ditadura para todos os demais.

Com berros irracionai­s desse tipo, negociar um diploma legal se converte numa roleta-russa. O processo legislativ­o pede racionalid­ade e prudência. Nenhuma boa decisão brotará da correria. Por isso os mais sensatos vêm recomendan­do que, se há alguém bem-intenciona­do por trás do projeto de lei, esse alguém deveria conter o passo, dialogar com a universida­de e avaliar com responsabi­lidade como é que pode funcionar – e se pode funcionar – uma lei contra a mentira. A matéria pede calma. Se o Direito positivo servisse para banir as inverdades deste mundo, a Constituiç­ão federal poderia resumir-se a um único artigo, “é proibido mentir”, e tudo estaria resolvido.

Acontece, nós sabemos, que nada estaria resolvido. Um artigo nesses termos, além de cômico, seria vazio, cairia na ineficácia absoluta. O que é a mentira? O que é “mentir”? A resposta não cabe dentro dos domínios da técnica legislativ­a. Não por acaso, um dos gargalos do projeto das fake news acabou sendo precisamen­te a impossibil­idade de definir um tipo específico de mentira: a “desinforma­ção”. O ímpeto legiferant­e (ou legifobéti­co) não capta o sentido da palavra “desinforma­ção” e sem captá-lo não consegue caminhar.

A pesquisado­ra Claire Wardle, líder e fundadora do projeto First Draft, ajuda-nos a entender essa palavra. Ela sintetizou sete categorias, apenas sete, e com elas classifico­u os “conteúdos” que sabotam o conhecimen­to dos fatos. No centro de gravidade dessas sete categorias Claire desenhou o conceito de “desinforma­ção”. A partir do pensamento dela, mas indo um pouco além, podemos traçar a definição que nos interessa e nos falta: a “desinforma­ção” constitui uma novíssima modalidade de mentira industrial­izada (fabricada em redes complexas de trabalho organizado), envolvendo recursos de monta e equipament­os ultramoder­nos, com foco nas redes sociais e com a intenção (dolo) de violar direitos das outras pessoas para obter vantagens (indevidas) políticas ou econômicas.

Usurpando as plataforma­s sociais, a indústria da desinforma­ção (que inclui as fake news, mas não se resume a elas) tem alcance incomparav­elmente superior ao da imprensa. Essa forma contemporâ­nea de mentira massiva e poderosa infecta como um vírus os organismos da democracia. A desinforma­ção industrial­izada – cada vez mais a serviço quase que exclusivo das falanges de extrema direita – corrói os meios legítimos de que dispomos para registrar aquilo que Hannah Arendt definiu como “verdade factual”.

Como se vê, não precisamos de uma resposta definitiva sobre a natureza da mentira ou da verdade na Filosofia para entender o estrago causado pela desinforma­ção. Basta-nos entender o valor da verdade dos fatos, essa pequena forma de verdade cotidiana, simples, que todos percebemos. Onde vigora a desinforma­ção, a sociedade perde a capacidade coletiva de constatar e nomear os fatos – e quando essa capacidade se dissolve, a política fica inviável e a democracia, impossível.

O problema é grave, mas uma lei improvisad­a não vai resolvê-lo. Antes de legiferar, deveríamos pensar mais, debater mais, informar mais.

O problema é grave, mas uma lei improvisad­a não vai resolvê-lo

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