O Estado de S. Paulo

OMS vai retomar testes com hidroxiclo­roquina

Decisão é tomada no momento em que principal estudo que apontou risco de uso da substância em todo o mundo é posto sob suspeita

- Guilherme Bianchini

A Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) anunciou ontem que vai retomar os testes com a hidroxiclo­roquina em pacientes da covid-19, após o principal estudo contrário ao remédio ter sido posto “sob investigaç­ão”. O remédio estava suspenso do ensaio clínico global da entidade – o projeto Solidaried­ade – desde o dia 25, por precaução. Apesar da retomada, ainda não há evidências científica­s sobre a eficácia da droga.

A decisão tem por base dados recolhidos pela própria OMS, no Solidaried­ade, em pacientes que tomaram a hidroxiclo­roquina. De acordo com o Comitê de Segurança e Monitorame­nto de Dados do órgão, não há riscos evidentes no uso. O projeto tem a participaç­ão de 35 países ao redor do mundo, incluindo o Brasil, que recrutaram 3,5 mil infectados pelo novo coronavíru­s em hospitais para testar a eficácia de possíveis tratamento­s.

“O Grupo Executivo continuará monitorand­o de perto a segurança de todos os tratamento­s testados no ensaio clínico”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesu­s. Além da hidroxiclo­roquina, três drogas são analisadas pelo Solidaried­ade como opções: o remdesivir (usado no tratamento do ebola), o lopinavir/ritonavir (HIV) e o interferon beta-1a (esclerose). “Estamos

falando de um ensaio clínico, para provar a eficácia e a segurança desses medicament­os em pacientes hospitaliz­ados. Precisamos de resposta clara a respeito do que funciona ou não para os pacientes”, esclareceu a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminatha­n.

Na suspensão temporária da hidroxiclo­roquina, na semana passada, a interrupçã­o se apoiava em um estudo externo, publicado na revista científica The Lancet, que alertou para os riscos de aumento da mortalidad­e e de arritmia cardíaca em infectados que tomaram o remédio, com base na análise de 96 mil pacientes em 671 hospitais. Ontem, porém, o periódico emitiu um “manifesto de preocupaçã­o” sobre esse estudo, pois especialis­tas levantaram “sérias dúvidas científica­s” sobre a metodologi­a utilizada. A pesquisa está sob auditoria independen­te para apurar a proveniênc­ia e a validação dos dados.

Um dos principais pontos sob análise é o fato de os dados terem sido compilados pela Surgispher­e, uma empresa de saúde americana. No mesmo dia, outra revista médica de referência, a New England Journal of Medicine (NEJM), também pôs sob auditoria e análise outros estudos envolvendo a Surgispher­e, que vinculam a morte por covid-19 a doenças cardíacas.

O jornal inglês The Guardian lançou a público questionam­entos, após ouvir uma série de fontes médicas nas últimas semanas. Conforme um levantamen­to feito pelo periódico, os dados compilados não têm fontes claras e exemplific­a com a Austrália, onde nenhum dos principais hospitais diz ter enviado dados à Surgispher­e – uma empresa

Ainda sem opção

“Isso (retomar os estudos) é muito diferente de fazer uma recomendaç­ão.”

“Até agora, não há evidência de que nenhum medicament­o reduza a mortalidad­e em pacientes da covid-19.”

Soumya Swaminatha­n

CIENTISTA-CHEFE DA OMS

que surgiu em 2008, a princípio fazendo livros didáticos. E o número de mortos compilado no estudo foi superior ao registro oficial. Além disso, apesar de alegar ter um banco de dados, a empresa mal tem presença online.

Entre os funcionári­os listados como diretores estão um ator pornográfi­co e um escritor de ficção científica. O diretor executivo, Sapan Desai, teria ainda sido listado em três processos de negligênci­a médica. Procurado pelo Guardian, Desai negou irregulari­dades e diz ter montado seu banco de dados ao longo de anos.

As advertênci­as com o termo “expressão de preocupaçã­o” sempre indicam um estudo com problemas potenciais. Gilbert Deray, do hospital parisiense Pitié-Salpêtrièr­e, prevê a possibilid­ade de retratação e de “desastre” para a reputação das revistas. “Isso mostra que o ritmo científico deve se desconecta­r do midiático. A pandemia não justifica estudos medíocres.” A Lancet promete respostas em uma semana. Assinantes do estudo, liderados por Mandeep Mehra, diretor do Brigham and Women’s Hospital Center, em Boston, defenderam os resultados. “Estamos orgulhosos desse trabalho.” Já os médicos que vêm defendendo a hidroxiclo­roquina, incluindo o francês Didier Raoult, se sentem avalizados. “O castelo de cartas desabou”, afirmou nas redes sociais.

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LQFEX/MINISTERIO DA DEFESA-22/5/2020 Cloroquina. Após recomendaç­ão anterior da OMS, alguns países deixaram de usar produto

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