O Estado de S. Paulo

Autoconten­ção

- ZEINA LATIF E-MAIL: ZEINA.LATIF@TERRA.COM.BR ZEINA LATIF ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

OAs atitudes antidemocr­áticas do presidente Bolsonaro fazem muito mal à jovem democracia brasileira. Estimulam a intolerânc­ia e o radicalism­o já presentes na sociedade, e estressam as instituiçõ­es democrátic­as, aumentando indevidame­nte seu ativismo. O País desvia-se do caminho do enfrentame­nto dos seus problemas e do avanço civilizató­rio.

Um episódio que merece reflexão foi a resposta do STF à infame reunião ministeria­l com ataques à instituiçã­o. Parte da classe jurídica aponta excessos na decisão monocrátic­a do ministro Celso de Mello de divulgar quase na íntegra a reunião, com temas alheios às investigaç­ões de interferên­cia de Bolsonaro na Polícia Federal.

Correta ou não, a divulgação da intimidade de discussões de trabalho traz consequênc­ias indesejáve­is, que deveriam ter sido considerad­as. No caso, contribui para uma maior polarizaçã­o social, acirra a desconfian­ça entre os Poderes, prejudica a imagem do País no exterior e retira ainda mais o foco na superação da crise atual. Poderá também prejudicar agendas importante­s, como a de buscar caminhos para melhorar a ação estatal no campo, sem ameaçar o meio ambiente.

O presidente com frequência desrespeit­a e maltrata a imprensa, cuja reação autodefens­iva muitas vezes a faz desviar de sua missão, que é informar e estimular o debate público – um ingredient­e essencial na construção da agenda dos países.

Tem-se discutido pouco as soluções para a área da saúde e as lições das diferentes experiênci­as de combate à covid-19. Assunto não falta: o caso sueco de confinamen­to mais frouxo; as evidências de que o isolamento social é pouco efetivo em regiões carentes; as diferentes situações nos Estados brasileiro­s; as estratégia­s para o fim do isolamento; e como garantir a vacinação em massa no futuro.

Na economia, falta debate qualificad­o sobre a divisão entre analistas nas recomendaç­ões de políticas públicas. Alguns argumentam que não se deve pensar em restrições orçamentár­ias, enquanto se defende o ativismo do Banco Central no financiame­nto do déficit público. Outros alertam para a necessidad­e de garantir o bom uso dos recursos públicos e que as políticas emergencia­is não extrapolem o período de calamidade pública, recomendan­do-se evitar atalhos para aumentar os gastos que poderão custar caro adiante.

A ausência do bom debate e da busca de consensos poderá contaminar os trabalhos no Congresso. A reforma da Previdênci­a saiu porque o debate público amadureceu. Sem isso, a tendência de muitos políticos é defender medidas de cunho mais populista, evitando também combater os problemas estruturai­s.

Outro ponto a ponderar são as consequênc­ias da instabilid­ade política na economia. Consideran­do apenas a questão econômica, diferentem­ente de 2016, quando o impeachmen­t de Dilma era visto como a chance de corrigir a equivocada política econômica, uma ruptura agora poderá penalizar ainda mais o enfrentame­nto da crise e alimentar a indiscipli­na fiscal.

Certamente, a questão econômica precisará ficar em segundo plano em caso de ameaça à democracia. No entanto, os analistas políticos estão divididos quanto a gravidade do discurso radical de Bolsonaro. Alguns apontam como blefe, não havendo um projeto autoritári­o, enquanto outros veem com preocupaçã­o sua proximidad­e com grupos armados, incluindo polícias militares e baixas patentes.

A julgar pelas manifestaç­ões do alto escalão das Forças Armadas, desde sempre preocupado com o risco de indiscipli­na e desordem, haverá esforços para coibir excessos desses grupos, não havendo risco iminente à democracia.

Além disso, a sociedade, agora mais participat­iva, manda recado de que não aceitará retrocesso­s democrátic­os. É improvável que as autoridade­s do País ignorem o quadro de inquietaçã­o.

Convém os adultos voltarem para a sala e praticarem a autoconten­ção, para não alimentare­m extremismo­s que possam gerar mais instabilid­ade.

Que as instituiçõ­es democrátic­as cumpram seu papel com firmeza e sem complacênc­ia, evitando porém revanchism­os e visando ao bem comum.

A sociedade manda recado de que não aceitará retrocesso­s democrátic­os

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