O Estado de S. Paulo

A tarefa de cuidar dos vivos

- EVERARDO MACIEL CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

Atragédia da pandemia, no Brasil, tornou visíveis graves patologias no Estado e na sociedade que permanecia­m disfarçada­s pela nossa histórica incapacida­de de tratar os problemas com responsabi­lidade e pela degradação do pouco que existia de empatia. O Estado, vilipendia­do pela corrupção sistêmica e pelo corporativ­ismo, é incapaz de exercer suas responsabi­lidades mínimas. A saúde pública, por exemplo, a despeito do honroso esforço dos que nela militam, é ineficient­e e dispendios­a. Sua gestão, não raro, se subordina ao loteamento político, que deságua invariavel­mente em escândalos.

Na elite do serviço público, nem sequer se fez valer a regra constituci­onal do teto remunerató­rio. No Judiciário, são espantosos os artifícios para concessão de gratificaç­ões disfarçada­s em indenizaçõ­es para contornar o teto. É inadmissív­el a concessão de auxílio-moradia, quando milhões de brasileiro­s não têm onde morar ou moram em condições indignas. No Legislativ­o, as superlativ­as cotas para o exercício da atividade parlamenta­r constituem uma deplorável forma de remuneraçã­o, atentatóri­a à pobreza da população.

As repercussõ­es sociais e econômicas da pandemia serão devastador­as. Mas como vamos cobrar sacrifício­s de todos, se a elite do serviço público goza de privilégio­s, antes inaceitáve­is e hoje acintosos? O exemplo é uma didática eficaz.

Poucas vezes em nossa história o equilíbrio institucio­nal esteve tão ameaçado. A sensatez é espancada diariament­e por incontinên­cia verbal ultrajante. As redes sociais são dominadas por ódio e polarizaçã­o extrema. O vandalismo, mesmo nas atuais circunstân­cias, está nas ruas. Tudo faz lembrar o que disse Ortega y Gasset (Meditações do Quixote) em 1914: “A moradia íntima dos espanhóis foi tomada a tempo pelo ódio, que permanece ali artilhado, movendo guerra ao mundo”.

Torço vivamente por um desfecho civilizado, mas receio que venhamos a ter graves transtorno­s.

A hora é de prosseguir com o enfrentame­nto da pandemia. É falso o dilema entre saúde e emprego. Seria insensato prescrever isolamento social senão como estratégia – não a única – de política sanitária. Ainda que seja óbvio, não esqueçamos que mortos não produzem nem pagam impostos.

O enfrentame­nto não pode, entretanto, interditar reflexões sobre o que fazer para além da política sanitária. Atribuise ao Marquês de Alorna resposta dada a Dom José I, rei de Portugal, que indagara sobre o que fazer após o terremoto que em 1755 devastou Lisboa: “Sepultar os mortos e cuidar dos vivos”.

Ainda que nem sempre estejamos sepultando os mortos com a reverência ditada por ancestrais tradições, é preciso recrutar contribuiç­ões para o futuro. Apresso-me em oferecer mais sugestões no campo tributário.

Convém que, imediatame­nte, se proceda à completa desoneraçã­o tributária da produção e distribuiç­ão de vacinas. Tal iniciativa dispensa justificaç­ões e seria inviável se estivéssem­os amordaçado­s pela infeliz tese da alíquota única e vedação de incentivos.

A administra­ção tributária deveria cuidar da certificaç­ão de créditos e prejuízos acumulados, que, somados aos precatório­s, facultem no futuro uma ampla compensaçã­o com créditos inscritos em dívida ativa.

Tributos com vencimento postergado­s de setores debilitado­s terão de ser parcelados. Sem prazos fixos e anistias, como tem sido habitual, mas vinculados à receita bruta, a exemplo do Refis original (1999), permitindo uma convivênci­a flexível com a crise.

É tempo de disciplina­r o Bônus de Adimplênci­a Fiscal (Lei n.º 10.637 de 2002), que reduz a tributação dos contribuin­tes que não têm litígio fiscal, estimuland­o, portanto, uma conduta amistosa, na esteira das sanções premiais preconizad­as por Norberto Bobbio. Mais ousadament­e, poderse-ia cogitar da adoção de novas hipóteses para concessão do bônus.

A tarefa futura de reequilibr­ar as contas fiscais não será fácil e exigirá muita determinaç­ão e criativida­de. Esse, todavia, será um problema, mais que brasileiro, universal.

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