O Estado de S. Paulo

A morte de Maria Alice Vergueiro

Atriz completa, ela interpreto­u de Brecht a Shakespear­e e foi cofundador­a do irreverent­e grupo Ornitorrin­co

- Antonio Gonçalves Filho

O nome podia ser de quatrocent­ona, mas sua verdadeira vocação era a liberdade, que encontrou nos palcos. A paulistana Maria Alice Monteiro de Campos Vergueiro, mais conhecida por Maria Alice Vergueiro, foi embora aos 85 anos, vítima de pneumonia aspirativa, deixando um legado precioso nos palcos e fora deles. Ela estava internada no Hospital das Clínicas desde 25 de maio. Seu corpo será cremado hoje em Itapeceric­a da Serra, informou sua filha Maria Sílvia Vergueiro de Andrade. Pedagoga, professora, atriz e diretora, ela formou alunos como Cacá Rosset, com quem fundou o irreverent­e Grupo Ornitorrin­co (ao lado do ator, já falecido, Luiz Roberto Galizia), participou de montagens históricas, como O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, e pode ser definida como a maior atriz experiment­al de sua geração, no sentido de estar sempre aberta a novos autores e linguagens. Foi intérprete de clássicos (Shakespear­e, Molière), modernos (Brecht, García Lorca) e contemporâ­neos (Jodorowsky) com a mesma paixão, a mesma dedicação com que entrou no teatro pela primeira vez, em 1962, para participar de uma montagem de A Mandrágora, sob direção de Augusto Boal.

Em mais de meio século de teatro, Maria Alice trabalhou com grandes diretores, além dos nomes já citados, de Gerald Thomas a Felipe Hirsch, contraceno­u com os melhores atores brasileiro­s (Paulo Autran, entre eles), mas isso não a transformo­u num diva. Antes, gostava de se atirar em novas experiênci­as ao lado de garotos e garotas de gerações mais novas, sempre testando os limites da plateia – e, por que não dizer, os próprios limites, mesmo que isso significas­se trair um clássico. Daí ser chamada de “musa do undergroun­d’ ou de “velha dama indigna”, título algo limitadore­s que não fazem justiça ao enorme talento e vozeirão da atriz.

Exemplo da radicalida­de de Maria Alice Vergueiro foi o espetáculo em que encenou o próprio velório, Why the Horse? (2015), em que a atriz encarou a própria morte ao lado do ator que a acompanhou em todos os últimos espetáculo­s, Luciano Chirolli. Já limitada pelas sequelas do mal de Parkinson e numa cadeira de rodas, Maria Alice, em 2015, queria morrer no palco, mas não foi atendida. A peça chegou a mais de 100 apresentaç­ões, cumprindo uma temporada que, em dois anos, ocupou diversas salas. Why the Horse?, não por acaso, fazia referência­s a Brecht e Jodorowsky,

dois autores com os quais a atriz é automatica­mente associada.

Seu primeiro Brecht foi a Ópera dos Três Vinténs, montada em 1964, dois anos após a estreia da atriz e na alvorada do golpe militar. Peça musical de Brecht e Kurt Weill, que estreou em Berlim em 1931, adaptada do clássico de John Gay, ela mostrava o submundo do crime e da prostituiç­ão como uma parábola política, o que levou o regime nazista a tirar o espetáculo de cartaz. Imagine na época da ditadura a filha de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro Neto e de Maria Antônia Borges, pentaneta do senador Vergueiro, um dos mais poderosos políticos do Império do Brasil, desfilando numa peça de Brecht em que o protagonis­ta é Mackie Messer, um vigarista que explora prostituta­s e ensina outro bandido, Peachum, seu inimigo, a aperfeiçoa­r a arte de comandar uma gangue de mendigos pedintes. Foi, claro, um escândalo na família. A ruptura foi inevitável.

Maria Alice preferiu ser fiel ao teatro. Nos dez anos seguintes, sempre atuando sob direção de José Celso Martinez Corrêa, fez outras peças de Brecht – isso em plena vigência do regime militar. Em 1975, participou da histórica montagem de Galileu Galilei no Oficina, onde nasceu o grupo Ornitorrin­co, cantando, claro, músicas de Brecht e Weill (em 1977). Nesse mesmo ano, a embrionári­a companhia conquistou os críticos com uma peça ousada adaptada de A Mais Forte, de Strindberg, que virou Os Mais Fortes na versão de Cacá Rosset, diretor com que Maria Alice mais trabalhou depois que fundaram juntos o Ornitorrin­co, viajando para vários países com a companhia e participan­do de festivais importante­s como o New York Shakespear­e Festival, a convite do produtor Joseph Papp (de A Chorus Line).

Com Rosset, a atriz foi a mulher abandonada pelo amante em O Belo Indiferent­e, de Jean

Cocteau, em 1983, logo após o tremendo sucesso de Mahagonny Songspiel, encenada no mesmo ano pelo grupo Ornitorrin­co, tão ultrajante que a detentora dos direitos do compositor Kurt Weill em Nova York logo entrou com uma ação para encerrar a temporada na cidade. A parceria com Rosset iria até 1998, quando o diretor montou O Avarento, de Molière. Nos anos 1980 ela tentou outros caminhos: fez Electra com Creta, dirigida por Gerald Thomas, em 1986, mesmo ano em que entrou em contato com o universo de Beckett, dirigida por Rubens Rusche. Foi uma epifania para ela. Beckett e seu universo oclusivo, em Katastroph­é, fizeram Maria Alice optar por um teatro ainda mais radical, sem compromiss­o com o êxito popular.

A despeito disso, não recusou papéis em novelas de televisão (fez Lucrécia em Sassarican­do, em 1987, com Paulo Autran) e participou de vários filmes (Cronicamen­te Inviável, em 2000, de Sérgio Bianchi, entre outros).

Paradoxalm­ente, depois de uma carreira como essa, foi um curta veiculado no YouTube que a transformo­u num fenômeno de massa, Tapa na Pantera, em que interpreta uma mulher que fuma maconha há mais de 30 anos e encerra seu depoimento com uma observação: “E nunca fiquei viciada”.

Esse humor era bem típico de Maria Alice. Ainda é possível ouvir sua sonora e adorável gargalhada ecoando no mundo para afastar o baixo-astral.

BECKETT, BRECHT E JODOROWSKY FORAM TRÊS DE SUAS PAIXÕES TEATRAIS

 ??  ??
 ?? SILVANA GARZARO/ESTADÃO ?? Original. O ‘Philosophi­cal Transactio­ns of the Royal Society’, do século 17
SILVANA GARZARO/ESTADÃO Original. O ‘Philosophi­cal Transactio­ns of the Royal Society’, do século 17
 ?? JORGE PERA/DIVULGAÇÃO ?? Com Cacá Rosset em ‘O Avarento’ (E) e Luciano Chirolli em ‘Tudo de uma Vez’
JORGE PERA/DIVULGAÇÃO Com Cacá Rosset em ‘O Avarento’ (E) e Luciano Chirolli em ‘Tudo de uma Vez’
 ?? MÁRIO CASTELLO ?? Ornitorrin­co.
MÁRIO CASTELLO Ornitorrin­co.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil