O Estado de S. Paulo

Governo passa verba do Bolsa Família para publicidad­e

Planalto transfere recursos do programa social para publicidad­e institucio­nal em meio a pandemia e é alvo de críticas de parlamenta­res; Nordeste é região mais afetada

- Camila Turtelli Felipe Frazão / BRASÍLIA

O governo repassou para a Secretaria Especial de Comunicaçã­o Social da Presidênci­a R$ 83,9 milhões que seriam usados no Bolsa Família. A verba será utilizada em publicidad­e. A medida atinge os recursos previstos para a Região Nordeste e provocou críticas por ocorrer durante a pandemia e porque 430 mil famílias estão na fila para entrar no programa. O governo não explicou o motivo da realocação.

No momento em que o presidente Jair Bolsonaro é alvo de protestos e sofre ameaça de impeachmen­t, o governo retirou R$ 83,9 milhões que seriam usados no programa Bolsa Família para investir em publicidad­e de suas ações. A medida atingiu os recursos previstos para a região Nordeste do País e causou críticas no Congresso por ocorrer durante a pandemia do coronavíru­s, quando muitas famílias estão sem fonte de renda. O dinheiro será destinado à Secretaria de Comunicaçã­o Social da Presidênci­a (Secom) e vai bancar a propaganda institucio­nal.

A portaria que prevê a transferên­cia da verba foi publicada ontem no Diário Oficial da União em ato assinado pelo secretário executivo do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues. Apesar do corte, o Ministério da Cidadania sustenta que o pagamento do benefício está garantido por recursos do auxílio emergencia­l. Há, no entanto, uma fila de espera de 433 mil pedidos para acesso ao Bolsa Família.

O valor total destinado ao Bolsa Família, no ano inteiro, é de R$ 32,5 bilhões. Técnicos do Congresso ouvidos pelo Estadão disseram que, como não há recurso extra, a transferên­cia de verba para a publicidad­e de atos do governo não precisa passar pelo crivo dos parlamenta­res.

Para efeito de comparação, os R$ 83,9 milhões destinados à Secom dariam para comprar 1.263 respirador­es hospitalar­es – ao custo de R$ 66,4 mil cada – ou 856.164 mil testes tipo RTPCR para detectar a infecção pelo coronavíru­s em pacientes, ao preço unitário foi de R$ 98.

A Secom já gastou R$ 17,8 milhões com propaganda durante a pandemia do coronavíru­s, de abril até hoje. Os recursos são utilizados para divulgar peças publicitár­ias com o mote de que é preciso “proteger vidas e empregos”. Depois do fracasso da campanha “O Brasil não pode parar”, vetada por decisão da Justiça, Bolsonaro e a Secom – comandada por Fábio Wajngarten – adotaram a frase “Ninguém fica para trás”.

Críticas. Parlamenta­res criticaram a transferên­cia dos recursos, principalm­ente por envolver dinheiro que seria destinado à população de baixa renda. “É importante lembrar que isso acontece no momento de aumento da fila do Bolsa Família, ao mesmo tempo em que pairam sobre a Secom denúncias de mau uso de suas verbas para a propagação de fake news e mensagens e ódio”, disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP).

O líder do Novo, deputado Paulo Gamine (RJ), afirmou que a verba da Secom foi reduzida de R$ 273 milhões para R$ 73 milhões na votação da Lei de Diretrizes Orçamentár­ias para 2020. “Nós reduzimos esse gasto e agora o governo quer recompor esse valor. A que custo? Para quê?”, perguntou. Já Perpétua Almeida (PC do B- AC) classifico­u a ação como criminosa: “Tirar R$ 83 milhões da boca de famílias pobres para fake news é crime”. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) adotou tom semelhante. “A medida diz muito sobre as prioridade­s de Bolsonaro. Tirar comida da mesa de quem mais precisa para aumentar a própria popularida­de é o cúmulo da canalhice”, protestou ele.

Em março, o Estadão revelou que a região Nordeste só recebeu 3% dos novos benefícios concedidos no mês de janeiro, enquanto o Sudeste e o Sul foram priorizado­s nas novas concessões, reunindo 75% dos pagamentos no primeiro mês deste ano. O Tribunal de Contas da União (TCU) avalia se houve irregulari­dade.

Questionad­o sobre a fila de espera no Bolsa Família, o secretário de Desenvolvi­mento Social do Ministério da Cidadania, Sérgio Queiroz, disse não haver motivo para preocupaçã­o. “Após a entrada em vigor do auxílio emergencia­l, todas as pessoas do cadastro único que se adequaram às exigências da lei do auxilio foram contemplad­as”, afirmou. Pela regra vigente, no entanto, o benefício será pago por apenas três meses.

Na prática, a campanha da Secom é diferente da produzida pelo Ministério da Saúde para fins de utilidade pública, com o objetivo de passar orientaçõe­s sobre o novo coronavíru­s. O ministério já gastou R$ 61 milhões e deve ampliar a despesa com produção de mais conteúdo.

O dinheiro para bancar a publicidad­e institucio­nal do governo Bolsonaro tem saído do orçamento de “Enfrentame­nto da Emergência de Saúde Nacional” dos ministério­s da Saúde e da Cidadania, os mais envolvidos em ações diretas para atendiment­o à população. A Secom, por sua vez, centralizo­u a produção das peças publicitár­ias. A campanha é feita pela agência Calia Y2, sem que tenha havido uma seleção interna das propostas de outras contratada­s pelo governo, como a NBS e a Artplan.

Um relatório produzido pela Comissão Parlamenta­r de Inquérito (CPI) das Fake News do Congresso apontou, na terça-feira, que o governo veiculou 2 milhões de anúncios em canais com conteúdos considerad­os “inadequado­s”. A lista inclui páginas que disseminam fake news, propagam jogos de azar ilegais e até sites pornográfi­cos.

A Secom argumentou que a escolha de onde os anúncios seriam veiculados coube ao Google, mas a empresa rebateu e afirmou ser possível bloquear veiculação de propaganda institucio­nal nesse tipo de site.

 ?? JOÉDSON ALVES/EFE ?? Sem máscara. Bolsonaro fala a apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada sem proteção, descumprin­do decreto do DF
JOÉDSON ALVES/EFE Sem máscara. Bolsonaro fala a apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada sem proteção, descumprin­do decreto do DF

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil