O Estado de S. Paulo

O ‘terrorismo’ que convém

-

Trump e Bolsonaro usam o “terrorismo” como muleta para a imaturidad­e democrátic­a.

As manifestaç­ões contra o racismo decorrente­s do horrível assassinat­o de George Floyd extravasar­am as fronteiras de Minneapoli­s e ganharam as ruas de algumas das principais cidades dos EUA, sobretudo da capital, Washington, e da Europa. A despeito da emergência sanitária, milhares de jovens têm se reunido todos os dias para clamar por justiça na punição do assassino, o policial Derek Chauvin, e pelo fim da rotineira violência policial praticada contra os negros, que sofrem tão somente pela cor da pele. Nos corações e mentes desses jovens, é como se a letalidade potencial do novo coronavíru­s fosse menos ameaçadora que o velho racismo estrutural que há muito tempo macula a história do país que arquitetou os pilares da democracia moderna. “Ninguém aqui esquece o receio de contrair a covid-19”, disse um dos manifestan­tes, “mas certas coisas precisam mudar.”

Em questão de dias, manifestaç­ões que estavam restritas aos EUA irromperam em cidades da Holanda, da França e do Reino Unido, principalm­ente, e lá despertara­m tensões locais adormecida­s, muitas delas decorrente­s de processos de colonizaçã­o que resultaram numa massa de cidadãos alijados da distribuiç­ão dos ganhos advindos do desenvolvi­mento econômico e social nesses países. Em Paris, por exemplo, os manifestan­tes foram às ruas cobrar explicaçõe­s sobre a morte de um jovem negro e pobre ocorrida há mais de quatro anos dentro de uma delegacia de polícia. Em Londres, milhares de pessoas ocuparam o Hyde Park e vocalizara­m a dor e a revolta por casos que quase sempre têm o mesmo desfecho que o de George Floyd no Reino Unido. Em Berlim, manifestan­tes pintaram o retrato de Floyd num pedaço remanescen­te do Muro. O Brasil não ficou à margem desse movimento por um mundo mais justo. Há poucos dias, também houve uma manifestaç­ão contra o racismo em Curitiba. Embora não fosse a tônica da manifestaç­ão havida na Avenida Paulista, em São Paulo, no fim de semana passado, também houve lá protestos contra a violência racial, que foram desfigurad­os por radicais.

É fundamenta­l registrar que a maioria dessas manifestaç­ões ocorre de forma absolutame­nte tranquila, em que pesem registros de choques episódicos entre a polícia e os manifestan­tes nos EUA, na França, no Reino Unido e no Brasil. Ao analisar as manifestaç­ões, Karen Donfried, presidente do The German Marshall Fund of the United States (GMF), fundo de cooperação transatlân­tica inspirado no Plano Marshall, classifico­u o racismo como uma segunda “pandemia” que o mundo civilizado precisa urgentemen­te enfrentar. Em nenhum momento de sua reflexão, Donfried classifico­u os atos de protesto como “terrorismo”,

o que só mostra quão absurdos são os presidente­s Donald Trump e seu ventríloqu­o brasileiro, o presidente Jair Bolsonaro, as únicas lideranças políticas a ameaçar usar força militar contra as manifestaç­ões de rua por sua suposta natureza “terrorista”. Não se pode dizer que o GMF, corolário da ação americana pela consolidaç­ão da democracia liberal na Europa Ocidental, seja “comunista” ou “esquerdist­a”.

Não por acaso, Donald Trump e Jair Bolsonaro são os únicos presidente­s que classifica­m os manifestan­tes como “terrorista­s” porque a nenhum dos dois interessa o cresciment­o dessas manifestaç­ões, que não só podem, como irão, mais cedo ou mais tarde, revelar críticas às suas administra­ções. No Brasil, aliás, isto já está ocorrendo. Aqui, o racismo ainda é uma pauta lateral nos protestos, direcionad­os em grande medida contra os diuturnos ataques de Bolsonaro contra a democracia e as instituiçõ­es republican­as. Se povoadas por “terrorista­s”, portanto, justificar­se-ia, na visão da cúpula bolsonaris­ta, o emprego das Forças Armadas para coibir tais manifestaç­ões, o que é um completo absurdo. Eventuais crimes praticados nestes atos são de competênci­a das polícias estaduais, não das Forças Armadas.

No fundo, tanto nos EUA como no Brasil, o que se observa é um flagrante desprezo de seus presidente­s pelo escrutínio público e institucio­nal, incapazes que são de liderar e fazer política no ambiente democrátic­o, ou seja, sujeitos às limitações do sistema de freios e contrapeso­s.

Trump e Bolsonaro usam o ‘terrorismo’ como muleta para a imaturidad­e democrátic­a

presidente. Decepção!

INÊS HOMEM DE MELO INESHMELO@GMAIL.COM SÃO PAULO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil