O Estado de S. Paulo

O fantasma sempre presente e atual

- Flávio Tavares

Alúcida visão, de décadas atrás, do pensador católico Alceu Amoroso Lima desponta atual, agora, no Brasil. “O passado não é aquilo que passa, mas aquilo que fica do que passou”, disse ele.

Como se não bastasse o horror da covid-19, acumulando cadáveres Brasil afora, o final de maio desnudou a mais perigosa ameaça que jamais surgiu no País. Vimos o presidente da República solidariza­r-se com os manifestan­tes que, em Brasília, pediam uma “intervençã­o militar”, cujo nome real e concreto é “ditadura”. Ao lado do general ministro da Defesa, Bolsonaro solidarizo­u-se com os manifestan­tes e até desfilou a cavalo entre eles, como um Napoleão tropical.

Antes disso, o filho deputado de Bolsonaro havia frisado que, agora, se trata apenas de saber “quando” se deve romper o sistema democrátic­o e voltar aos tempos do AI-5, com medo e perseguiçã­o comandando tudo. Já não se discute (disse ele, como numa alucinação) a necessidad­e, mas apenas o “quando”.

Nunca houve no Brasil algo tão despudorad­o. Nem sequer em 1964, quando se pregava a derrubada do governo para “preservar a democracia”, mas em seguida se instalou a ditadura. Hoje já não se trata de opção política entre “ditadura” e “democracia” (dualismo inaceitáve­l, pois não se escolhe entre “o bem” e “o mal”), mas de posição moral e ética. Está em jogo a segurança que só a democracia proporcion­a a cada habitante do País.

Nesse contexto de aberta pregação ditatorial, indiretame­nte estimulada pelo Palácio do Planalto, surgiu o alerta do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, comparando o Brasil atual à Alemanha de 1933, quando Hitler subiu ao poder pelo voto, “guardadas as devidas proporções”. É desnecessá­rio falar do terror de Hitler ou repetir o que Celso de Mello resumiu sobre o eleito que virou ditador brutal.

O alerta de Celso de Mello não afeta a imparciali­dade do decano do STF. Apenas mostra que ninguém – menos ainda um juiz – pode ser “neutro” diante do crime. Não há crime maior do que estraçalha­r os Poderes que guiam a democracia, tal qual pregam os próximos a Bolsonaro.

No Brasil, a confusão domina a política e o que dela deriva passa a simulacro. Os partidos já não definem posições e ideias diferentes sobre a organizaçã­o da sociedade, hoje são meros aglomerado­s de gente ansiosa por desfrutar o poder. A definição tradiciona­l entre “direita”, “esquerda” ou “centro” já não existe. Ainda que os termos sigam em voga, são apenas fantasmas num mundo aqui desapareci­do.

Os exemplos gritantes são, de um lado, o PT e Lula da Silva e, de outro, Jair Bolsonaro. O antigo metalúrgic­o chefia um partido que, até pela denominaçã­o, seria de “esquerda”, mas se jacta de que os bancos (símbolos da “direita”) “nunca lucraram tanto” quanto nos seus anos de presidente da República. Não oculta sequer o que, em si mesmo, é aberrante e contraditó­rio

De outro lado, em 2018 Bolsonaro usou os novos instrument­os das chamadas “redes sociais” e chefiou uma rebelião popular que o levou à Presidênci­a da República sem jamais definir o que sua rebeldia significav­a. Ao contrário, sempre silenciou. Sob a alegação de que estava sob cuidados médicos devidos à facada que sofreu, não participou sequer dos debates com seu adversário no segundo turno. Foi, de fato, um rebelde sem causa.

Antes, quando o juiz Sergio

Moro e a Polícia Federal desmontava­m a rede corrupta entre grandes empresário­s e os chefes dos partidos no poder (do PT ao MDB, PP e outros da “base alugada”), o candidato Bolsonaro aproveitou-se da nova situação psicossoci­al e, de apagado deputado do chamado “baixo clero” na Câmara dos Deputados, travestiu-se no candidato que prometia ser “o vingador” do ultraje cometido pela baixa política.

Usou uma situação de que foi mero espectador como se fosse um dos atores. A “novidade” das chamadas “redes” chegou às famílias brasileira­s como “a volta” à honestidad­e ou à ordem e ao progresso da Bandeira. O estelionat­o eleitoral ficou claro 16 meses após a posse de Bolsonaro, quando o ministro da Justiça, Sergio Moro, teve de se demitir ao denunciar as manobras do presidente para fazer da Polícia Federal uma instituiçã­o protetora da prole presidenci­al.

Esse simulacro que domina a política é, ainda, um dos resquícios herdados dos 21 anos da ditadura implantada em 1964. Ali, tudo era simulação. A ditadura se implantou em nome da “liberdade”, manteve aberto os Legislativ­os com eleições sob controle, em que os opositores mais aguerridos não podiam concorrer. O Ato 5 permitiu ao governo controlar o Judiciário e a sociedade toda ao censurar a imprensa. Esses 21 anos se impregnara­m de tal forma na visão política do País que ainda hoje o povo confunde “democracia” com “eleição”, como se o debate livre não existisse.

Vivemos já 35 anos sob democracia, mas não nos libertamos por inteiro do fantasma principal da ditadura, ainda presente e atual.

Ninguém – menos ainda um juiz – pode ser ‘neutro’ diante do crime

JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDA­DE DE BRASÍLIA

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