O Estado de S. Paulo

Racismo e amor

- Modesto Carvalhosa ✽ ADVOGADO Dedico este artigo a Fernando Gabeira

“O amor não é o oposto do ódio, o poder é o oposto do amor” Carl Jung

As manifestaç­ões que tomam conta das ruas de cidades americanas e europeias em decorrênci­a do martírio de George Floyd sob os joelhos de cinco policiais de Minneapoli­s impression­am por terem tomado feição pacífica após os primeiros confrontos, de grande violência, no Estado de Minnesota. Essa novidade importantí­ssima da resistênci­a na luta aberta contra o racismo passa despercebi­do da imprensa e da opinião publica, que se contenta com dados estatístic­os e históricos, contabiliz­ando-a entre as maiores nos Estados Unidos, comparávei­s às dos anos 1950 e 1960.

Acontece que o presente movimento não é mais do mesmo. Agora existe um grande congraçame­nto e uma enorme coragem dos milhares de participan­tes, que, em vez de invocarem o black power, ajoelham-se – numa perna só para mostrar dignidade, e não submissão –, convidando os policiais a fazerem o mesmo.

O mantra é “não consigo respirar”, em lugar de imprecaçõe­s contra os esbirros do violento racismo. Não se propõem negros e brancos, juntos, a confrontar, mas a demonstrar amor e compaixão em torno do sacrifício de tantas vítimas da persistent­e discrimina­ção que envergonha secularmen­te a maior democracia do mundo.

Há uma comovente invocação do amor ao próximo e da misericórd­ia nesse reencontro dos participan­tes, ao proclamare­m que sem justiça não há paz. Ao invés de confrontar­em o poder das ruas e dos votos, milhares se deitam em toda a extensão de uma enorme ponte na posição do martírio de oito minutos de George Floyd.

Esse é o caminho que espontanea­mente tomou a parcela antirracis­ta do povo americano na sua reivindica­ção pelo direito dos negros de não serem perseguido­s e massacrado­s pelo poder público, com o respaldo dos supremacis­tas.

Nada de confrontos com a polícia ou a temida Força Nacional, armada para reprimir “os terrorista­s internos”, nas palavras do autocrata Trump. Não se tem mais vergonha de se comportar nas ruas com amor. Essa palavra, banida do uso comum por demonstrar fraqueza e pieguice, volta com força capaz de congregar pretos e brancos na reivindica­ção de dignidade humana para as vítimas cotidianas da discrimina­ção.

Os manifestan­tes mostraram profundo respeito por George Floyd e sua filha de 6 anos. A pessoa, a figura do mártir, não foi utilizada para reivindica­ções cerebrinas e estratégic­as de empoderame­nto dos oprimidos.

Tudo leva a crer que o povo antirracis­ta – pretos, brancos, latinos, amarelos – percebeu que a resistênci­a ao poder iníquo é o melhor caminho, em vez de confrontá-lo diretament­e, num ajuste de contas com um Estado altamente aparelhado e truculento. Percebeu-se que o racismo é, sobretudo, uma questão emocional, fruto dos recalques de alma que afetam tanto winners como losers e que apenas uma permanente campanha educaciona­l pode dissipar no decorrer das gerações.

O embate se dá entre os valores culturais e emocionais do racismo, cultivados no meio familiar e social, mostrando a indignidad­e humana que essa conduta representa.

A propósito, interessan­te notar que as palavras “amor”, “caráter” e “honra” foram abolidas do vocabulári­o e das crônicas da vida contemporâ­nea. Mas o amor voltou, não em palavras, mas em atitude dos manifestan­tes americanos, que, sem muita teorização, perceberam que é inútil confrontar o poder dos brancos no seu racismo institucio­nalizado com o “poder dos negros”, que, na realidade, pouco pode fazer.

Procura-se agora, com enorme sabedoria, mostrar que o racismo é uma vergonha para uma nação e para todos as pessoas que a integram. Só a afirmação do amor e da súplica pela justiça podem trazer essa consciênci­a aos donos do poder e seus centuriões.

Essa mensagem deve persistir uma vez amainadas as manifestaç­ões de rua que ora presenciam­os. É necessário que as personalid­ades envolvidas nessa missão de resgate da dignidade dos negros em todo o mundo tenham a coragem de falar a palavra amor.

Barak Obama, no seu esperado pronunciam­ento sobre a luta contra o racismo, nenhuma vez invocou o amor que os manifestan­tes incorporar­am ao seu comportame­nto nas ruas de Washington, Nova York e tantas outras cidades daquele país. Tampouco nos maravilhos­os depoimento­s das nossas jornalista­s negras na GloboNews, em 3 de junho, se ouviu essa invocação do amor. Nem mesmo quando falaram, para nossa profunda comoção, da dúvida existencia­l das negras sobre a maternidad­e, pondo filhos neste mundo odioso.

O racismo somente se dissipará quando demonstrar­mos às gerações presentes e futuras que ele é uma vergonha e o seu exercício, mais do que um crime, é uma indignidad­e pessoal para quem o pratica. É fundamenta­l que as grandes fundações privadas e a sociedade civil se empenhem nessa campanha em favor do amor e contra o ódio, pura e simplesmen­te.

Há uma comovente invocação do amor ao próximo nas atuais manifestaç­ões nos EUA

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