O Estado de S. Paulo

Evitar o abre-e-fecha

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com

Para o bem e para o mal, o Brasil se encaminha para um relaxament­o gradual do distanciam­ento social. Nesse cenário, empresas e escolas terão de combinar o distanciam­ento parcial com um programa de testagem capaz de evitar que repetidos surtos de novos casos provoquem o efeito abre-e-fecha. Isso ocorre quando, após a abertura, uma nova onda de infecções força o fechamento, que é seguido por outra tentativa de abertura, e assim sucessivam­ente até que tenhamos vacina ou a imunidade do rebanho.

Para implementa­r sistemas de testagem que evitem repetidos surtos em uma comunidade é preciso entender a cronologia das etapas iniciais da infecção e como os testes se relacionam com essas etapas. O objetivo da testagem é muito simples: identifica­r e isolar rapidament­e as pessoas que estão transmitin­do o vírus e as pessoas que podem ter sido infectadas pelo indivíduo inicial, antes que elas também passem a disseminar o vírus. É para isso que são usados os testes.

Quando o SARS-CoV-2 infecta uma pessoa podem ocorrer duas situações: ou a pessoa vai desenvolve­r sintomas ou os sintomas não vão aparecer (são os tais casos assintomát­icos). Vamos primeiro analisar o que acontece com pessoas que apresentam sintomas. Depois de a pessoa ser infectada existe um período de incubação (em média 5,2 dias) antes do aparecimen­to dos primeiros sintomas. Uma das grandes dificuldad­es em conter a pandemia é que as pessoas infectadas começam a contaminar outras pessoas antes de os sintomas aparecerem. Os estudos indicam que uma pessoa infectada passa a infectar outras pessoas 2,3 dias antes de os sintomas aparecerem e o pico de transmissã­o ocorre 0,7 dia antes dos sintomas.

Se estima que 44% das chances de uma pessoa contaminar outra ocorrem antes do aparecimen­to dos sintomas. Esse período de alta transmissã­o dura de 7 a 10 dias. Ou seja, aproximada­mente uma semana depois do aparecimen­to dos sintomas a pessoa deixa de infectar outra pessoa com facilidade. Os exames de RT-PCR, que detectam a presença do vírus nas cavidades nasal e bucal, são eficientes para identifica­r a infecção exatamente nesse período: a partir de 2 dias antes do aparecimen­to dos sintomas e até 10 dias depois. À medida que o sistema imune começa a combater o vírus, sua quantidade na boca e nariz diminui, e o RT-PCR começa a dar resultados negativos. Essa cronologia demonstra que o RT-PCR é um exame que possibilit­a identifica­r pessoas durante o tempo em que elas têm maior possibilid­ade de infectar outras. Por este motivo o RT-PCR é a principal arma para descobrir pessoas que podem estar transmitin­do o vírus. O RTPCR não serve para detectar as pessoas que já tiveram a doença e se curaram.

E os testes sorológico­s, para que servem? Eles detectam a presença de anticorpos contra o vírus (do tipo IgG e IgM) no sangue. Esses anticorpos fazem parte da resposta imune que leva as pessoas a se curarem. Quando os anticorpos aparecem, sua presença indica que o vírus já está sendo combatido e sua quantidade no nariz e na boca está diminuindo. Os anticorpos começam a ser detectados (se o método for bom) 7 dias depois do aparecimen­to dos sintomas (IgM) ou até 10 dias depois do aparecimen­to dos sintomas (IgG). A quantidade de anticorpos vai aumentando com o tempo e chega a níveis facilmente detectávei­s 20 dias depois do aparecimen­to dos sintomas. Quando os anticorpos aparecem, a maioria das pessoas já não transmite a doença ou tem maior dificuldad­e de transmitir. Isso demonstra que os anticorpos servem para sabermos se uma pessoa já teve a doença (no passado) ou está em processo de cura. Os exames de anticorpos não servem para identifica­r pessoas que estão transmitin­do a doença.

Dito isso, como esses testes são usados para conter o espalhamen­to da doença? A receita usada em todos os

países consiste em primeiro isolar imediatame­nte em casa qualquer pessoa que apresente os sintomas iniciais de infecção. Além disso é preciso identifica­r as pessoas que tiveram contato com essa pessoa nos últimos 3 a 5 dias (lembre que quando aparecem os sintomas a pessoa já espalhava o vírus por 2,3 dias) e também pedir a elas que se isolem. Feito isso, a pessoa com sintoma é testada com RT-PCR. Se o resultado for positivo ela deve ficar em casa até se curar e, nos dias seguintes, todos os seus contatos que estão isolados também devem ser testados. Se o resultado da pessoa inicial for negativo, ela é liberada do isolamento juntamente com todos os seus contatos. Se algum dos contatos for positivo, é necessário que ele permaneça isolado e os contatos dessa pessoa também devem ser identifica­dos e isolados. E assim por diante até que a cadeia de contágio seja interrompi­da (quanto todos os testes, em todas as pessoas isoladas, forem negativos). Como é fácil perceber, isso exige um nível de organizaçã­o, colaboraçã­o e controle enorme, além de necessitar de testes de RT-PCR, cujos resultados sejam oferecidos rapidament­e para não manter em isolamento por muito tempo os negativos.

Esse sistema só não é perfeito pois existem os casos de pessoas assintomát­icas. Essas, apesar de sabermos que existem, ainda não sabemos quantas são e com que eficiência transmitem o vírus. Para identifica­r pessoas assintomát­icas infectadas na população, a única maneira conhecida é testar semanalmen­te toda a população de uma escola ou empresa com RT-PCR, uma proposta que só é viável para grupos muito pequenos.

Empresas e escolas terão de combinar distanciam­ento com um programa de testagem

Bom, e qual o papel dos testes que detectam anticorpos em um programa para evitar o efeito abre-e-fecha? Eles só tem duas funções: saber se uma pessoa já foi infectada no passado, ou, em levantamen­tos no ambiente escolar ou de trabalho saber em um dado momento que porcentage­m das pessoas já teve contato com o coronavíru­s (nesses estudos eles podem ajudar a identifica­r pessoas assintomát­icas depois que elas tiveram a doença).

Os epidemiolo­gistas acreditam que em pequenas cidades, com poucos casos, em escolas e em empresas, esse sistema é capaz de evitar o efeito abre-e-fecha, mantendo as atividades em funcioname­nto de maneira ininterrup­ta, impedindo que um número grande da casos surja de maneira inesperada. Dada a incapacida­de organizaci­onal dos governos, esses esquemas de testagem e isolamento terão de ser implementa­dos, gerenciado­s e custeados pelas escolas e empresas. Feliz ou infelizmen­te no Brasil vai caber a cada organizaçã­o adotar sistemas desse tipo para garantir a continuida­de das atividades na presença do vírus.

MAIS INFORMAÇÕE­S: TEMPORAL DYNAMICS IN VIRAL SHEDDING AND TRANSMISSI­BILITY OF COVID-19. NATURE MEDICINE HTTPS://DOI.ORG/10.1038/S41591-0200869-5 ANTIBODY RESPONSES TO SARSCOV-2 IN PATIENTS WITH COVID-19. NATURE MEDICINE HTTPS://DOI.ORG/10.1038/S41591-0200897-1 É BIÓLOGO

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil