O Estado de S. Paulo

Estudo da ‘Lancet’ sobre cloroquina é retirado do ar

Três dos 4 principais autores se retrataram, alegando não poder confirmar a base de dados usada na pesquisa

- Giovana Girardi

O controvers­o estudo publicado em 22 de maio na revista The Lancet com mais de 96 mil pacientes internados, que havia concluído que o uso da cloroquina ou da hidroxiclo­roquina em pacientes com o coronavíru­s, mesmo quando associados a outros antibiótic­os, aumenta o risco de morte e arritmia cardíaca nos infectados, foi retirado de circulação ontem por três de seus quatro autores.

O estudo havia motivado a suspensão, por parte da Organizaçã­o Mundial de Saúde, de uma pesquisa global com a droga. Mas logo após a publicação uma série de questionam­entos e suspeitas foi levantada sobre a base de dados utilizada no trabalho, o que fez a OMS retomar nesta quarta os testes clínicos com a substância. Ainda na terça, a Lancet havia divulgado um “manifesto de preocupaçã­o” a respeito do estudo. E agora os cientistas se manifestar­am publicamen­te, afirmando que não tiveram condições de confirmar a veracidade dos dados apresentad­os.

A pesquisa publicada na Lancet tinha sido apresentad­a como a maior já realizada sobre os efeitos que a cloroquina e a hidroxiclo­roquina têm no tratamento do coronavíru­s, de modo observacio­nal. Ela foi feita a partir de uma base de dados da Surgispher­e Corporatio­n, uma pequena empresa americana que apresentou informaçõe­s de diversos hospitais de vários países. O fundador da empresa, Sapan Desai, apareceu como co-autor do trabalho.

Nesta quarta, o jornal inglês The Guardian publicou uma reportagem levantando suspeitas sobre a empresa. Disse que ela tinha em sua equipe um escritor de ficção científica e um “modelo de conteúdo adulto” e que os dados apresentad­os não batiam com a realidade de alguns hospitais, como da Austrália, por exemplo.

Os outros três autores do estudo, Mandeep Mehra, Frank Ruschitza e Amit Patel, afirmam en nota divulgada ontem pela Lancet, que lançaram uma revisão independen­te, por uma terceira parte, dos dados da Surgispher­e, com o consentime­nto de Desai, “para avaliar a origem dos elementos da base de dados, para confirmar que estavam completos e também para replicar as análises apresentad­as no estudo”.

Na nota, os pesquisado­res dizem, porém, que os revisores informaram que a Surgispher­e não transferir­ia toda a base de dados e os contratos dos clientes porque isso “violaria os acordos de confidenci­alidade”. Sendo assim, dizem que não foi possível “conduzir uma revisão independen­te e privada” e os revisores iam se retirar do processo. “Sempre desejamos realizar nossa pesquisa de acordo com as mais altas diretrizes éticas e profission­ais. Nunca podemos nos esquecer da responsabi­lidade que temos, como pesquisado­res, de garantir escrupulos­amente que nós nos calçamos em bases de dados que aderem aos nossos altos padrões. Com base nesse desenvolvi­mento, não podemos mais garantir a veracidade das fontes de dados primárias. Por causa desse desenvolvi­mento infeliz, os autores solicitam a retirada do artigo”, escreveu o trio.

“Todos nós entramos nessa colaboraçã­o para contribuir de boa fé e em um momento de grande necessidad­e durante a pandemia de covid-19. Lamentamos profundame­nte a vocês, editores e leitores da revista por qualquer constrangi­mento ou inconveniê­ncia que isso possa ter causado.”

A revista afirmou que “leva a sério as questões de integridad­e científica” e disse que “há muitas questões pendentes sobre a Surgispher­e e os dados que supostamen­te foram incluídos neste estudo”. Apesar das possíveis falhas deste estudo, outras pesquisas vêm indicando que a cloroquina e a hidroxiclo­roquina têm pouca ou nenhuma efetividad­e para tratar a covid-19 ou proteger contra a doença.

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GEORGE FREY/REUTERS–27/3/2020 O medicament­o. Outros estudos não comprovam eficácia

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