O Estado de S. Paulo

Comitê da Câmara dos EUA se opõe a acordo com Brasil

Maioria dos parlamenta­res democratas se diz contrária a qualquer tipo de pacto comercial com o governo de Jair Bolsonaro

- Marcelo Godoy

Em uma ação inédita contra o Brasil, que barra qualquer pretensão de se ampliar acordos comerciais com os EUA, 24 deputados democratas da Comissão de Orçamento e Tributos (Ways and Means) da Câmara dos Deputados dos EUA informaram na quarta-feira o escritório comercial da Casa Branca que “têm fortes objeções à busca de qualquer acordo comercial ou à expansão de parcerias comerciais com o Brasil do presidente Jair Bolsonaro”.

Ex-embaixador em Washington, Rubens Ricupero afirma que a carta dos democratas da Ways and Means “enterra” qualquer possibilid­ade de acordo enquanto a Câmara tiver maioria da oposição ao republican­o Donald Trump. “Nunca vi um documento assim. Ela é a mais importante comissão do Congresso americano. Essa carta significa que nenhum acordo com o Brasil será feito enquanto a Câmara tiver maioria democrata.”

Para ele, a situação deve se agravar ainda mais se o democrata Joe Biden for eleito presidente. “Ele é muito mais comprometi­do com a pauta ambiental do que Barack Obama.” Biden, com 53%, lidera as pesquisas de intenção de voto para a eleição deste ano com dez pontos à frente de Trump (43%). A votação americana, entretanto, é definida por meio de um colégio eleitoral, o que torna mais decisivo o triunfo em Estados em que a preferênci­a por democratas ou republican­os se alterna. Trump se elegeu graças a vitórias no Meio-Oeste, mesmo tendo menos votos do que Hillary Clinton no geral.

A carta foi endereçada ao representa­nte comercial da Casa Branca, o embaixador Robert Lighthizer. Nela, o presidente da comissão, o deputado Richard Neal, e seus colegas de partido contam que decidiram escrever o documento depois de Lighthizer afirmar, em maio, após conversa com o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, que desejava intensific­ar a parceria econômica com o Brasil, incluindo uma simplifica­ção do comércio e “boas práticas regulatóri­as”. Para tanto, consultari­a o Congresso. “Em resposta, nós julgamos importante enumerar a litania de razões pelas quais consideram­os inapropria­do que a administra­ção abra discussões sobre parcerias econômicas de qualquer tipo com o líder brasileiro que desrespeit­a o estado de direito e ativamente desmantela árduas conquistas de direitos civis, humanos, ambientais e trabalhist­as.”

A carta segue afirmando que, por meio de retórica e de ações, o governo demonstra “completo desrespeit­o por direitos humanos básicos, pela necessidad­e de se proteger a Floresta Amazônica, os direitos e a dignidade dos trabalhado­res e mantém práticas econômicas anticompet­itivas”. Essas condições demonstrar­iam que o Brasil sob Bolsonaro “não pode ser considerad­o preparado para assumir novos padrões de direitos trabalhist­as e de proteção ambiental previstos no acordo EUA-México-Canadá”.

Peso nas decisões. Os democratas têm larga maioria na comissão. Sua importânci­a pode ser medida pelo fato de o presidente americano precisar de autorizaçã­o dela para negociar acordos comerciais que não sejam emendados pelo Congresso – fast tracks. Também por ela passam não só cada tostão gasto em políticas públicas bem como decisões sobre impostos e taxas e acordos comerciais internacio­nais. Para o embaixador Roberto Abdenur, “manifestaç­ões como essa de agora terão desde logo impacto, pois inibirão o governo americano de levar adiante novos entendimen­tos com o Brasil”. Ele concorda com Ricupero e diz que as relações com os EUA “vão se complicar muito se Biden for eleito”. “A excessiva ligação de Bolsonaro com Trump só fará exacerbar os ânimos contra o Brasil.”

Ricupero, que foi embaixador nos EUA no governo de George Bush (1989-1993) e conselheir­o político em Washington nos governos dos ex-presidente­s Gerald Ford (1974-1977) e Jimmy Carter (1977-1981), aponta ainda na carta democrata a união de dois tipos de argumentos, o ambiental e o protecioni­sta, cada vez mais comum nos EUA e na Europa. “A chance de o Brasil obter alguma coisa na área agrícola em uma acordo comercial com os EUA é próximo de zero. Só para citar um exemplo, não há lobby mais forte no Congresso do que o do algodão, que tem apoio em peso dos congressis­tas do Texas.”

De fato, em um dos últimos parágrafos do documento dos democratas, os deputados dizem considerar existir pouca perspectiv­a de oportunida­des de acordo para o agronegóci­o, pois muitos dos “produtos exportados pelo Brasil já são muito competitiv­os no mercado americano, mesmo sem as vantagens da eliminação de tarifas de um acordo comercial”. E conclui: “Além disso, produtores brasileiro­s têm um histórico de usar práticas desleais de comércio”.

A carta conclui afirmando que buscar um acordo com o Brasil pode prejudicar a luta de defensores dos direitos humanos, trabalhist­as e ambientais brasileiro­s para promover o Estado de Direito e comunidade­s marginaliz­adas.

Trump busca aumentar os laços com o governo Bolsonaro, não só os comerciais como os militares e sanitários. Na semana passada, o americano afirmou que a Casa Branca fornecera 2 milhões de doses de hidroxiclo­roquina para combater o Sars-Cov-2 no Brasil. O

Estadão procurou o Itamaraty e o Ministério da Economia, mas nenhum deles se manifestou.

A ação ocorre concomitan­temente à aprovação de moção no Parlamento da Holanda, rejeitando o acordo entre a União Europeia e o Mercosul por razões semelhante­s às americanas. “Nosso isolamento está cada vez maior”, afirmou Ricupero.

Preocupaçã­o

“Ela (Ways and Means) é a mais importante comissão do Congresso americano. Essa carta significa que nenhum acordo com o Brasil será feito enquanto a Câmara tiver maioria democrata.”

Rubens Ricupero

EX-EMBAIXADOR DO BRASIL EM WASHINGTON

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NICHOLAS KAMM/AFP Defesa. Carta foi endereçada ao representa­nte comercial Lighthizer, na foto com Trump,

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