O Estado de S. Paulo

Soluções para problemas concretos passam pela boa política nas democracia­s.

- João Gabriel de Lima*

*PASSA A ESCREVER AOS SÁBADOS

Soa a música tenebrosa de duas notas: mi-fá. Mi-fá. Mifá-mi-fá. Mi-fá-mi-fá-mi-fámi-fá... O sol ilumina as águas, e elas se tingem de sangue.

Quer uma dica de filme para a quarentena? Tubarão, velho clássico de Steven Spielberg (tem no Netflix). Toda vez que o tema de John Williams toca, o espectador se arrepia. É o prefixo do oceano vermelho. O tubarão não aparece, mas os personagen­s sentem sua presença na carne. Ou melhor, seus dentes.

Na maior parte do filme, o peixe é um inimigo invisível. Como o novo coronavíru­s.

O paralelo entre a ficção de ontem e a realidade de hoje se justifica. Principalm­ente quando se revê (tem no YouTube) uma das cenas mais famosas do filme: o diálogo entre Larry Vaughn, prefeito da cidadezinh­a de Amity, e o cientista Matt Hopper. O mundo da política e o mundo do conhecimen­to. Não é bem um diálogo – é briga mesmo.

Depois dos primeiros ataques do tubarão, Hopper sugere ao prefeito que feche as praias, para evitar novas vítimas: “Só há dois jeitos de combater o tubarão. Matá-lo ou cortar seu suprimento de alimentos, as pessoas”. Vaughn, em seu paletó com âncoras estilizada­s, teme pela fuga dos turistas em plena temporada de verão.

Um outdoor mostra uma banhista pegando jacaré nas praias ensolarada­s de Amity. Um gaiato desenhou um grito de pavor em seus lábios, e uma nadadeira de tubarão atrás dela. Vaughn manda prender o autor da intervençã­o por depredar patrimônio público.

A interação – nem sempre pacífica – entre os mundos da política e do conhecimen­to ficou evidente em tempos de pandemia. E o mundo do conhecimen­to, tal qual no enredo de Tubarão, ganhou prestígio.

Um estudo do Shorenstei­n Center da Universida­de Harvard mostrou que a confiança dos americanos em cientistas é maior do que em autoridade­s federais ou na mídia.

Outra pesquisa, feita no Brasil com usuários de redes sociais pelo Centro de Estudos Estratégic­os da Fiocruz, apontou um índice alto de compartilh­amento de mensagens científica­s.

Um terceiro levantamen­to, feito pela consultori­a Idea Big Data, mostrou que o interesse dos brasileiro­s em ouvir opiniões de especialis­tas aumentou em 76% em tempos de covid-19.

A conversa entre política e conhecimen­to não se limita aos momentos em que um vírus espalha mortes pelo planeta. Ela já vem de muito tempo, com o uso crescente de bancos de dados no desenho de políticas públicas. Isso não significa que a política seja uma atividade meramente técnica.

Em tese, os políticos tomam suas decisões baseados na vontade dos cidadãos – para isso são eleitos. Não é possível, no entanto, ignorar os fatos na hora de tomar tais decisões. Quem vai fazer um ajuste fiscal precisa saber o tamanho da dívida. Quem quer combater a pobreza tem de saber o número de cidadãos vulnerávei­s e onde eles estão. São as tais “evidências”, palavra da moda na tribo dos acadêmicos.

Esta coluna que começa hoje versará principalm­ente sobre isso: soluções práticas para problemas concretos, e o debate – baseado em evidências – em torno de tais problemas. Sempre tendo em mente que, nas democracia­s, tais soluções passam pela política. A boa política.

Em Tubarão, o prefeito Vaughn acaba sozinho e sem votos, tragado pelo oceano vermelho da política. Será este o destino dos governante­s que ignoram as evidências em suas decisões?

Mi-fá. Mi-fá. Mi-fá-mi-fá. Mi-fámi-fá-mi-fá-mi-fá...

O mundo do conhecimen­to, tal qual no enredo de ‘Tubarão’, ganhou prestígio na pandemia

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