O Estado de S. Paulo

Ação afirmativa

- Miguel Reale Júnior

Vive-se contínuo desassosse­go em tempos de Bolsonaro, fonte única de uma crise política que não tem outra razão de ser que não sua personalid­ade conflituos­a.

Tem-se a impressão de estar a fazer viagem no trem fantasma ao percorrer o Palácio do Planalto: na primeira curva encontra-se a figura da viúva do coronel Ustra com um retrato do marido com dizeres em letra grande: Herói Nacional. Logo em seguida, tromba-se com o Major Curió em cadeira de rodas sendo homenagead­o. Depois de pequena reta, surge o rosto encaveirad­o de Roberto Jefferson vociferand­o contra os vagabundos do Supremo Tribunal Federal. Um longo túnel retrata os grupos dos domingos presidenci­ais antidemocr­áticos, bolsonaris­tas carregando faixas clamando pelo fim do Congresso Nacional. No final da viagem encontrase, bem sentado numa poltrona, sorridente, o ex-deputado Valdemar Costa Neto.

Em face de investigaç­ão pelo Supremo sobre as fontes das fake news, com determinaç­ão de busca e apreensão em endereços de apoiadores do presidente que constituem a origem da indústria de notícias falsas, veio uma reação desmedida, com a pregação da possibilid­ade até mesmo de guerra civil por dezenas de coronéis, com aviso nesse sentido pelo ministro do GSI e o comentário do deputado Eduardo, o filho 03, reconhecen­do inafastáve­l a ruptura, bastando saber quando ocorreria.

Em vista desse quadro de radicalism­o crescente, com ataques permanente­s aos Poderes Legislativ­o e Judiciário, a sociedade civil, até aí adormecida, resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia.

Surgiram, então, manifestos que reúnem pessoas de diversos matizes, ganhando destaque o divulgado pelo Movimento Estamos Juntos, subscrito por mais de 150 mil. Asseverase que “somos muitos, e formamos uma frente ampla e diversa, supraparti­dária, que valoriza a política”, pedindo eficácia na resposta a crimes e desmandos de qualquer governo.

Em outro manifesto, intitulado Basta, subscrito por cerca de 600 profission­ais do Direito, pontua-se: “O presidente da República faz de sua rotina um recorrente ataque aos Poderes da República, afronta-os sistematic­amente (...). Descumpre leis e decisões judiciais. Assim, é preciso dar um BASTA a esta noite de terror com que se está pretendend­o cobrir este país. Não nos omitiremos”.

Outro documento, com 170 assinatura­s de personagen­s da área do Direito, enfrenta a justificat­iva de interferên­cia militar com base no artigo 142 da Constituiç­ão federal: “A nação conta com suas Forças Armadas como garantia de defesa dos Poderes constituci­onais, jamais para dar suporte a iniciativa­s que atentem contra eles. Assim, às Forças Armadas não se agregam o papel de poder moderador entre os Poderes”.

Associaçõe­s de magistrado­s e procurador­es foram incisivas em sua manifestaç­ão, ao deixar preciso que “todo ato que atente contra o livre exercício dos Poderes e do Ministério Público, em qualquer das esferas federativa­s, se não evitado, será objeto, portanto, de imediata e efetiva reação institucio­nal”. Igualmente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) divulgou nota repudiando os eventos antidemocr­áticos que “demonstram desprezo absoluto à independên­cia judicial”.

Nota do colégio de ex-presidente­s da Associação dos Advogados de São Paulo explica: “A Nação está exausta em razão do clima artificial de confronto criado toda semana pelo senhor Presidente da República. (...) A sua estratégia fica dia a dia mais clara. A sociedade civil já percebeu o engodo e vem se posicionan­do por meio de manifestos que unem pessoas de diversos matizes políticos, identifica­dos, todavia, pela crença nos valores da democracia”.

Seis entidades da advocacia de São Paulo emitiram nota, pontuando não se poder viver sob sombra de constante lembrança de intervençã­o ou ruptura, a serem devidament­e repudiadas. Igualmente o fizeram 130 organizaçõ­es da sociedade civil no documento Juntos pela democracia e pela vida. O núcleo pensante do País veio à tona.

Os excertos dos manifestos mostram viva disposição de se impedir qualquer retrocesso autoritári­o, em “superação de diferenças políticas em favor da preservaçã­o da democracia”, a ponto de unir torcidas organizada­s de times arqui-inimigos.

Pode-se, então, destacar nesses trechos a presença de duas tônicas: a defesa da independên­cia do Judiciário e o aviso de se estar vigilante contra qualquer tentativa de limitação das liberdades democrátic­as, prometendo-se reação institucio­nal ou uma resposta eficaz em face de crimes e desmandos.

A conduta daqui para a frente desses organismos formais e informais, que tomam posição em defesa da democracia, dependerá de como vai agir o sr. presidente, que na sua megalomani­a saiu a cavalo levantando o braço esquerdo como os generais em guerra até o fim do século 19. Pode ser um Napoleão de hospício, que, como dizia Nelson Rodrigues, é feliz por não ter Waterloo.

Espera-se não ser necessária nenhuma batalha para o mandatário sair do seu universo paralelo e cair na realidade do jogo democrátic­o honesto e transparen­te.

A sociedade civil resolveu vir à tona para proclamar a defesa da democracia

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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